Colaboração Especial/Luiza Helena Oliveira da Silva*
Paris (França) 19/04/14-Na última quinta-feira, 17, morreu aos 87 anos o escritor colombiano Gabriel García Marquez, Prêmio Nobel da literatura, de 1982. Recebo a notícia pelo Facebook, postada por uma amiga tocantinense, a historiadora Olivia Antunes Medeiros. Atordoo-me, impotente. Se tenho uma identidade, ela em grande parte foi construída pelos seus romances, a tal ponto que podia me explicar, ou pressentir, ou ter esperanças a partir do que encerravam suas narrativas, como se os textos trouxessem de algum modo a chave: era a metáfora, o oráculo, um outro modo de ter acesso ao que de outra maneira jamais se sabe.
Uma vez, um amigo pesquisador da literatura, Márcio, me falara sobre seu interesse em investigar os efeitos da leitura de “Cem anos solidão” em diferentes leitores. Entre cervejas, numa das boas tardes tocantinenses, conversávamos sobre isso: não se passa incólume pelo livro. Não me lembro dos efeitos que me confidenciava ter experimentado, ou o de seus amigos, mas sei que, ao encerrar a leitura, tinha a impressão de que meus pés não mais alcançavam o chão. Estavam a alguns centímetros acima, como se andasse em outra realidade. A sensação que nunca mais se repetiu, apesar dos meus muitos desvarios, seguindo na minha memória. Lembro de atravessar a ponte sobre o rio Paraíba do Sul, em Barra Mansa, a caminho do curso de Letras, que então, aos 19 anos cursava, com o volumoso livro nas mãos, observando o chão mais distante. Visitava Macondo?
Ontem, fui procurar em um dos principais jornais brasileiros o que haviam publicado ante a passagem de um dos mais importantes autores de nosso tempo. Assim como um outro amigo historiador, Dernival, fiquei frustrada.
Um dos jornalistas escreveu que Gabo não era tão à esquerda. Mas que era um pacifista, afirmação que parecia querer eximi-lo de algum pecado ideológico. Um dos textos, sem parecer encontrar mais nada relevante a dizer, falava da ruptura com Vargas Llosa, insinuando que a razão se encontrava no ciúme que este sentia da esposa. Trazia uma foto de García Marquez, registrando os olhos roxos com o soco que teria levado do então ex-amigo.
Havia ainda um outro texto, de um crítico literário, comparando o escritor com outros autores contemporâneos latino-americanos. Gabo não foi capaz de grandes subversões na sintaxe dos textos, sua linguagem não tinha a surpresa de “O jogo da amarelinha”, de Cortázar. Apenas fizera sucesso inaugurando o que se convencionou chamar de “realismo mágico” ou “realismo fantástico”. Seus textos seriam lidos com facilidade por adolescentes, possivelmente porque estes, apenas introduzindo-se na experiência da boa literatura, não seriam capazes de maiores voos. Era, apenas, um “bom contador de histórias”, dizia o crítico.
Desisti do jornal. Encontrei coisas muito mais consistentes e decentes no Facebook, onde estavam presentes os leitores de carne e osso, que se deixaram cativar. Multiplicavam-se imagens do romancista com flores amarelas, possivelmente em alusão à borboletas que seguiam um de seus personagens de seu romance mais conhecido. Homenagens diversas dos que se apaixonaram pelas muitas histórias. Além das fotos e charges, ali havia fragmentos de seus textos, como o que postou o linguista Eduardo: “Pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: o coração tem mais quartos que uma pensão de putas” (de “O amor nos tempos do cólera”). Ou ainda a declaração de amor feita pela professora de literatura Francis, introduzida com uma citação do autor, saída de “Cem anos de solidão”: “O amor é uma peste”. Ou o endereço de um link para baixar um de seus romances, verdadeira fórmula para socializar um tesouro. Que o leiam com respeito, isso é, com o coração devidamente aberto, como quem parte para um grandioso encontro. Que a vida jamais será a mesma. E trata de limpar os pés porque a terra onde pisarás é sagrada.
Tinha até poucos meses a ilusão de que minha história amorosa seria semelhante a de Florentino Ariza. E eu até esperaria tantos anos, se, como diria Camões, “não fora pra tão grande amor, tão curta a vida”. Um acidente do destino mudou-me os planos e pus-me em outra embarcação. Enfim, como homenagem aos personagens que dão ainda sentido a minha vida, fiz um poema. Esta matriarca que vos escreve, está, afinal de contas, em seu outono.
o amor em tempos de partida
durante décadas
permaneci a sua espera
minha Fermina Daza
não toquei violino
mas escrevi cartas
até que a recebi em meus braços
o barco ancorou, enfim,
partiste sem olhar para trás
não quiseste a continuidade
o caminho previsível
a mornidão dos dias ao meu lado
não sabias que haveria tempestades
e que podias segurar-te as mãos
o amor não valeria o risco?
não me arrependo das esperas
porque a espera me conformou os dias
morre, enfim, García Marquez,
eu, Floretino, me dispo?
que faço eu com as narrativas?
com uma história amor que é sem volta?
* Luiza Helena é Professora da UFT e pós-doutoranda em sociossemiótica.
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