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Duas notas sobre as depressões

Apresento de maneira bastante resumida duas características que entendo irredutíveis no quadro depressivo: 1) culpa e crueldade e 2) o vazio.

Podemos entender a depressão como um luto prolongado, acrescido da figura da baixa autoestima
Foto: Ilustrativa

De acordo com o site da Organização Pan-Americana da Saúde e Organização Mundial da Saúde, “depressão é a principal causa de incapacitação em todo o mundo”. Segundo matéria publicada em setembro de 2020 pelo Estadão, a partir de dados inéditos fornecidos pelo Google, a busca neste site, em 2019, tendo como expressão-chave a pergunta: como lidar com teve, dentre as três perguntas mais recorrentes, duas relacionadas à saúde mental: uma à ansiedade e outra à depressão.

 

Observe que os dados fornecidos pelo Google e analisados pelo Estadão são de antes da Pandemia do Covid-19, o que nos leva a crer que a situação no campo das ansiedades e das depressões tem se agravado ainda mais nestes últimos dois anos.

 

De fato, como escreve o psiquiatra e psicanalista brasileiro Joel Birman, em seu livro O trauma na pandemia do coronavírus, de 2020, a depressão, a partir de 2018, já era considerada, do ponto de vista epidemiológico, pela OMS como o maior problema de saúde pública em escala internacional. Tendo esse panorama como pano de fundo, faremos duas anotações sobre as depressões.

O que é depressão?

Um modo palpável de entender o que é depressão, mesmo para quem não é profissional da saúde mental, é tomar como paradigma o luto, seguindo as pegadas deixadas por Sigmund Freud em seu texto, publicado em 1917, Luto e melancolia.

 

Para Freud, o luto é a reação à perda de algo ou alguém amado, o que deixa a pessoa enlutada dolorosamente abatida e apática em relação ao mundo e a todo tipo de atividade, o que se faz acompanhar de sentimento de culpa e raiva não somente contra outras pessoas, mas também contra si mesmo.

 

A depressão, então, na linguagem de hoje, podemos entendê-la como um luto prolongado, acrescido da figura da baixa autoestima.  

 

Dialogando com Joel Birman, em seu livro O sujeito na contemporaneidade, de 2012, e com Maria Rita Kehl, em seu trabalho O tempo e o cão: a atualidade das depressões, de 2010, apresento de maneira bastante resumida duas características que entendo irredutíveis no quadro depressivo:

 

1) culpa e crueldade: a pessoa deprimida é esmagada por um persistente sentimento de culpa, que se manifesta de maneira cruel e violenta, sem que a pessoa saiba, necessariamente, explicar o porquê;

 

e 2) o vazio: a pessoa sente-se vazia e desvitalizada e, olhando para o mundo, não há nada que chame sua atenção, ou seja, nem dentro nem fora de si não encontra sentido nenhum na e para a vida. Dito de outro modo, na depressão a potência de vida é drenada, deixando ao deprimido apenas o sentimento de um buraco, bordado de apatia e impotência.

 

Por que tanta depressão?

 

Motivos para luto é o que não falta com essa pandemia do Covid-19: passando pelos quase seiscentos mil brasileiros já mortos, alguns deles talvez nossos parentes, amigos, conhecidos ou vizinhos, engloba também emprego perdido, a liberdade de ir e vir, a sala de aula presencial, até as costumeiras viagens de férias, as praias no verão, a próxima temporada da série favorita que não saiu etc. Some-se a isso as perdas inconscientes sobre as quais nada podemos falar.

 

Freud dizia que no luto sabemos o que perdemos: uma pessoa amada ou alguma coisa que o valha, como um ideal ou a liberdade, por exemplo. Na melancolia, ou depressão, como estamos chamando, não sabemos o que perdemos. Ainda que saibamos quem perdemos, não sabemos o que perdemos nesse alguém. Isso nos ajuda a entender que nestes tempos que estamos vivendo não conseguimos calcular e processar todas as nossas perdas, porque elas são da ordem do consciente e do inconsciente.

 

Por exemplo, indo mais longe, não é demais afirmar que um mundo pré-pandêmico foi perdido e ninguém ainda sabe ao certo como será o pós-pandemia.

 

Na verdade, como tem ensinado o psicanalista e psiquiatra brasileiro Jorge Forbes, o mundo tal como conhecíamos há bastante tempo já vinha ruindo, o que foi acelerado pela pandemia. As estruturas que sustentavam a organização dos modos de vida na sociedade foram paulatinamente se estraçalhando dando lugar a uma multiplicidade nas maneiras de viver que muitos não acham fácil de suportar.

 

O Sociólogo polonês Zygmunt Bauman, já no início dos anos 2000, chamou esse mundo de líquido, flexível, em que nada tem duração longa garantida. Jorge Forbes, por sua vez, mais recentemente, nomeou esse novo mundo de TerraDois, indicando que em todos os domínios da vida – e até nos modos de morrer - precisamos passar pelo processo de reaprender. Muitos, porém, não veem sentido viver neste mundo líquido nem nos que estão por vir.

 

Outros identificam-se com um mundo que imaginam um dia ter existido, o dos sólidos, para usar expressão de Karl Marx, ou TerraUm, como o chamou Jorge Forbes. De qualquer modo, são muitas perdas, reais ou imaginárias, conscientes e inconscientes, em volume e intensidade muito grandes para elaborar, o que nem todos conseguem, sucumbindo, então, à depressão.

 

Diante dos sofrimentos de uma pessoa depressiva, muitos ainda reagem como se não fosse algo sério. Acreditam se tratar de corpo mole, de preguiça, melindre ou fragilidade de gente mimada. O preconceito e a pouca abertura afetiva ainda são fortes barreiras para que se busque a ajuda profissional necessária.

 

Que ninguém pense que julgar ou recomendar pensamento positivo seja uma saída, assim como também não o é adotar uma posição de condescendência e estender lenço como se o depressivo fosse um coitadinho. Do meu ponto de vista, o melhor é o caminho da parceria, incentivando a pessoa a procurar um profissional da saúde mental e se oferecer para acompanhar, como provavelmente faria se a doença fosse uma outra grave qualquer.

Autor

Dr. Francisco Neto Pereira Pinto   Dr. Francisco Neto Pereira Pinto

  Psicanalista, escritor, membro da Acalanto, e professor no PPGDire/UFNT e no Unitpac. E-mail: fneto@uft.edu.br