Raylinn Barros da Silva
Há um ano o mundo católico e não católico foi surpreendido pela renúncia de Bento XVI e a eleição de Francisco, o religioso argentino apareceu na sacada principal da Basílica Vaticana de São Pedro em Roma. De rosto afável e sorridente ele era uma dúvida, mas também uma esperança para mais de 1 bilhão e meio de católicos espalhados pelos cinco continentes.
Um ano depois no comando da Igreja não há como não buscar no seu antecessor Bento XVI o referencial para analisarmos o governo de Francisco. Assim, é fácil inferir que o papa Bento era pra dentro, Francisco é pra fora, Bento queria que o mundo coubesse dentro da igreja, Francisco quer que a igreja vá para o mundo, Bento era um não reformador, Francisco quer e está reformando a igreja. Bento era um papa teólogo, Francisco é um papa do povo. Quando ainda era cardeal em Buenos Aires não queria que o chamassem de cardeal, queria que o chamassem de padre. Considero que ele inaugurou um estilo novo, até pra honrar a fonte inspiradora dele que é São Francisco de Assis.
O exemplo de São Francisco
Sabemos que no século XIII no auge do papado de Inocêncio III que foi o papa mais poderoso da história, São Francisco de Assis no contraponto daquela igreja imperial criou um caminho alternativo junto com os pobres, os doentes, dentro da natureza, chamando a todos de irmãos e irmãs e vivendo um evangelho que “nascia de baixo” na linguagem popular e esse papa está se inspirando nessa figura de São Francisco de Assis com um elemento me parece muito significativo incluindo ao lado da dimensão tipicamente religiosa e eclesial que está ligada à igreja, a questão da terra, da ecologia.
Todos irmãos
Assim como São Francisco de Assis, o atual papa chama a terra de mãe terra, chama todos os seres de irmãos e irmãs, e todos nós sabemos que o sistema terra, que o sistema vida estão gravemente ameaçados até com o risco de que nossa civilização possa, se nós não cuidarmos, até desaparecer ou ser altamente dizimada. Então todas as igrejas e também a Igreja Católica tem que despertar para essa realidade nova, pois nunca corremos um risco como esse e todos devemos dar a nossa contribuição. Ai desloca o assento, a discussão agora não é que futuro tem a igreja e o papado, mas que futuro tem o planeta, que futuro tem a vida, a nossa civilização. Em que medida o cristianismo, as igrejas e as religiões podem colaborar com hábitos e mentalidades novas para preservar essa herança que recebemos: a vida.
O papa Francisco quando foi explicar a escolha do seu nome disse que queria uma igreja dos pobres e para os pobres. Acredito que quando falamos dos pobres falamos daqueles que menos vida tem e que são condenados a morrer antes do tempo e na realidade são as vítimas desse sistema que explora as pessoas e que no fundo não as ama, ama a sua capacidade de produção, a sua capacidade de consumo e os pobres são aqueles como falou Darcy Ribeiro, o “carvão” que o sistema usa para a máquina produtiva. Nesse sentido, acredito que essa visão do papa Francisco vai ao encontro do que acredita a Teologia da Libertação quando defende a “opção preferencial pelos pobres”, contra a pobreza e a favor da justiça, vendo o pobre não simplesmente como o pobre no sentido hermenêutico do termo, mas vendo nele o oprimido.
Então o papa está sendo muito explicito no seu estilo de vida. Ainda como cardeal na capital argentina, viveu de forma extremamente pobre, deixou o palácio, vivia num quarto humilde, tomava ônibus, viajava de metrô, ia sozinho pra favela, conversava com todo mundo. Agora como papa, em Roma, decidiu não morar no luxuoso aposento papal, mas na Casa Santa Marta, uma espécie de alojamento no Vaticano, onde moram mais ou menos 100 religiosos e funcionários da Santa Sé.
Ao contrário dos antecessores que levavam sobre a túnica branca uma destacada cruz de ouro, a sua é de latão na cor prata. Recusou-se a usar os tradicionais e milenares sapatos vermelhos adornados, preferiu continuar usando seu sapato preto com o qual subia as favelas de Buenos Aires. Quando esteve no Brasil na sua primeira viagem internacional como Papa durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro em 2013, o mundo o viu sendo conduzido por um carro popular pelas ruas da cidade. Por várias vezes pediu para o motorista parar o veículo, para desespero dos seguranças, saia do carro para cumprimentar o povo que o esperava e aplaudia, sentiu e deu a esse povo o seu calor humano.
Por esses motivos acredito que ele tem um hábito pessoal de pobreza e simultaneamente entende que a herança que João XXIII nos deixou é que a igreja é de todos, mas principalmente para os pobres, porque são aqueles que nos atualizam a paixão de Cristo. Ele acredita que a igreja deve socorrê-los para que possam viver, pois não se trata de riqueza porque o oposto da pobreza não é a riqueza, mas a justiça.
No que concerne às reformas na engessada e milenar Cúria Romana, o aparato administrativo da Igreja, Francisco vem promovendo uma verdadeira faxina. Afastou os principais personagens que estavam envolvidos em escândalos financeiros envolvendo o IOR (Instituto de Obras de Religião), que é o Banco do Vaticano. Nomeou para a administração desse órgão pessoas da área financeira e conhecimento técnico numa clara demonstração de sua reprovação e insatisfação com os rumos que estavam sendo dados por importantes prelados da Cúria nos negócios financeiros da Igreja.
Um personagem central na renúncia de Bento XVI, o cardeal italiano e Secretário de Estado do Vaticano na época Tarcísio Bertone, uma espécie de primeiro ministro do Papa, que era tido como a peça principal da crise por qual passava a Igreja, foi afastado do seu posto e aposentado compulsoriamente por Francisco. Em menos de nove meses o papa foi afastando todos os aliados desse cardeal e redefinindo postos e obrigações de cada prelado no governo da Igreja.
Ainda no âmbito das nomeações de novos bispos e cardeais, Francisco vem estabelecendo novas diretrizes e requisitos para essas nomeações. Seguindo João Paulo II, deseja aprofundar o processo de internacionalização da Igreja Católica, levando para os principais postos de comando da Igreja em Roma, religiosos mais afinados com seu projeto de renovação das estruturas da instituição. Recentemente nomeou uma equipe de oito cardeais para aconselhá-lo nas decisões. A maioria dos cardeais desse conselho é de não europeus, com a supervisão de uma figura conhecida no ciclo: Oscar Rodriguez Maradiaga, cardeal de Tegucigalpa em Honduras, tido como progressista e que há anos defende uma renovação nas estruturas da Igreja.
No último dia da sua visita no Rio de Janeiro durante a Jornada Mundial da Juventude, solicitou uma reunião rápida com bispos da CELAM (Conferência Episcopal Latino Americana). Trechos desse encontro foram mostrados ao vivo por algumas emissoras de televisão e diante dos bispos e cardeais do continente americano, sem rodeios disse: “sejam como padres de uma paróquia, que visitam e conhecem suas ovelhas, elas os reconhecerão e ouvirão a voz de vocês. Não tenham espíritos de príncipes que são distantes de seus súditos”.
Acredito como historiador de temas ligados ao cristianismo católico, que Francisco está delineando um novo modelo de cristianismo tanto para o mundo leigo católico como para o seu clero e episcopado. Essas novas diretrizes estão, para mim, muito claras em seus gestos, em seus passos. E cabe, sem querer ser muito insistente na comparação com Bento XVI, uma reflexão: enquanto Bento ensinava com seus discursos teológicos, Francisco ensina com seus gestos de humildade.
Acredito que está sendo levada em diante, pelo atual papa, o que pode ser considerado o início de uma reforma moral nas estruturas da Igreja. Sim, reforma moral, pois delimita hábito, costumes, visões, prioridades. Essa reforma moral que acredito, é extremamente válida e necessária para “salvar” a Igreja Católica de uma profunda crise de credibilidade que se abateu sobre ela de umas décadas pra cá. Mas, esperemos que Francisco inicie, com sua humildade e sabedoria, outra reforma essa talvez a mais necessária que é uma reforma teológica. Essa consistiria numa renovação da teologia da Igreja, com a revisão de temas como o marianismo (culto à Maria), a questão do culto às imagens e por último o que considero imprescindível nessa reforma teológica: o fim do celibato clerical.
Finalmente, se ele possui essas questões como preocupação – reforma teológica – não sabemos ainda, mas levando em conta a sua coragem, humildade e seu espírito renovador não é de se estranhar que ele faça como fez João XXIII que, em 1961 com 80 anos de idade e lutando contra um câncer, surpreendeu o mundo ao convocar o Concílio Vaticano II, reunião que promoveu a mais profunda renovação que a Igreja Católica até então havia vivido em 2 mil anos de História.
Perfil
É Licenciado em História e Especialista em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins. Professor efetivo de História da rede estadual de ensino do Tocantins atuando no ensino médio. Pesquisa temas ligados à religião e religiosidade popular. Publicou pela Editora kelps o livro Pedro Milagroso: o mendigo que virou santo. É membro da ABHR - Associação Brasileira de História das Religiões. E-mail: raylinn_barros@hotmail.com.