Presidente Lula se mantém firme contra a ofensiva de Israel a Gaza
Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Desde que a guerra entre o Hamas e o estado de Israel começou, uma porção enorme de enunciados discursivos se produziu associando os responsáveis pelo conflito com a figura de Adolfo Hitler e o genocídio provocado pelo holocausto. Esta porção de enunciados discursivos fabricou olhares diversos acerca do passado das duas partes envolvidas no conflito. Para além da luta entre o bem e mal, entre grupos terroristas estatais ou não estatais, entre quem está e não está com a razão, o que esses olhares enxergam e nos dizem? O que eles legitimam ou deslegitimam?

Discursos e narrativas não se produzem aletoriamente nem tão pouco se interessam, única e exclusivamente, pelo estabelecimento de uma verdade verificável, mesmo que na maioria dos casos isto apareça, de alguma forma, em suas enunciações como a finalidade precípua. Claro que, na maioria das vezes, o produtor ou os produtores do discurso estão mais preocupados em não mentir, mas mentir ou não mentir não depende simplesmente da capacidade cognitiva ou da boa vontade individual. Geralmente mentira e verdade aparecem como resultados dos elementos possíveis de se mobilizar em um cenário discursivo ou no universo de uma luta social que envolve subjetividades individuais e coletivas. 

Narrativas ou enunciados discursivos geralmente são, por mais que não pareçam, projéteis disparados contra alvos identificáveis, estando sempre envolvidos ou imersos em querelas, combates, disputas ou conflitos.  Para o analista de discursos, o essencial é tratá-los desta maneira, procurando descobrir, para além do que é verdade ou mentira em uma elocução discursiva, o sentido que possivelmente lhe é inerente; saber por quê foi produzido e por quê foi lançado em um espectro social particular ou geral; descobrir, enfim, o que este discurso efetivamente constrói, voluntária ou involuntariamente, na amplitude do universo sócio cultural.

Desde o início do conflito do Hamas com o estado israelense, uma das atitudes de diversos atores sociais, principalmente nas redes sociais, foi a analogia ou a associação das autoridades israelenses e dos ataques de Israel na Faixa de Gaza com a figura de Hitler, com os nazistas e o Holocausto que dizimou milhões de Judeus nos campos de concentração durante a segunda guerra mundial. Como se sabe, o holocausto colocou em perigo eminente a existência do povo judeu na medida em que os nazistas pretenderam exterminá-lo, varrê-lo da face da terra. Desde a segunda guerra mundial, o holocausto se configura como tema bastante sensível no imaginário judeu; e se encontra presente e sacralizado no imaginário da população mundial, incluindo inclusive tanto a extrema direita sionista como antissemita e os humanistas de vários matizes ideológicos.

 No imaginário mundial - incluindo o que se manifesta nas redes sociais - e no da extrema direita sionista que hoje governa o país, Hitler e os nazistas são desumanos, implacáveis e cruéis, e o holocausto representa, igualmente e genericamente, um fato desumano, um crime vergonhoso. Todavia, para a extrema-direita antissemita o holocausto também representou, até certo ponto, uma desumanidade, mas historicamente foi “necessário”, sendo seus realizadores representados como responsáveis por “uma ordem” e “uma missão” que precisavam ser, respectivamente, cumprida e realizada. Por outro lado, associar, equipar ou comparar alguém da extrema direita sionista aos nazistas, à Hitler e ao holocausto parece ser perturbador, uma ofensa imperdoável, uma “evidência” do comportamento antissemita. Não sem razão, pois o holocausto representa ao mesmo tempo um sofrimento e uma fonte de legitimidade institucional e histórica para eles.

Nas interações das redes sociais, a figura de Hitler e o tema do holocausto tem sido evocado para explicar, e até julgar, a resposta que o governo de Israel dá, desde o início, à violência praticada pelo grupo terrorista Hamas em seu território. Esta evocação certamente incomodou as autoridades públicas mais proeminentes do estado israelense, mas ao que parece não chegou a ser considerada, publicamente, virulenta, ameaçadora à legitimidade institucional e histórica de Israel nem a “contaminar” seriamente as diplomacias mais influentes do cenário mundial, mantendo-se assim relativamente confinadas nas interações aligeiradas dos internautas comuns.  Aliás, curiosamente até pouco tempo pareceu que o governo de Israel não lhes davam muita atenção, e até fazia de conta que elas não passavam de elucubrações populares folclóricas e fantasiosas. Este aparente “faz de conta”, juntamente com o poio da Europa, dos Estados Unidos e de uma “coligação” de ricos poderosos em ambas as partes, tornou mais tranquilas, porém mais brutais, as operações militares de Israel que “deitou e rolou” no território palestino desde o começo da guerra, servindo, inclusive, para demonstrar a fraqueza da ONU, do Tribunal Penal Internacional (ou Tribunal de Haia), da diplomacia do mundo Árabe e dos Bric’s (China, Rússia, Brasil e África do Sul, principalmente) que pouco ou quase nada fizeram para freá-las. Por um lapso de tempo, depois de iniciada a guerra, pareceu que o mundo das redes sociais jogou a toalha e não quis mais ver, concretamente, a carnificina que Israel está fazendo na Faixa de Gaza. Na minha observação, nos messes que se seguiram ao começo da guerra, houve certo esmorecimento do trabalho de elaboração discursiva responsável por associar as operações militares de Israel ao holocausto e Netanyahu à Hitler.

De fato, uma leitura mais atenta perceberá que a evocação do holocausto e da figura de Hitler, visando dimensionar o horror produzido por Israel contra os palestinos atualmente, é genérica nos comentários comuns das redes sociais e tem como propósito fazer apenas uma associação, isto é, uma aproximação genérica e não exatamente uma equiparação. Sem dúvida, por inúmeras razões importantes, é controverso equiparar, em termos absolutos, as ações militares de Israel na Palestina com o genocídio executado contra o povo judeu na segunda guerra mundial. Primeiro porque o mundo e o imaginário judaico se acostumou a sacralizar o genocídio provocado pelo holocausto; segundo porque no conflito da Palestina de hoje não existe uma indústria da morte planejada para funcionar como uma linha de montagem voltada à exterminação de um povo; terceiro porque não existem campos de concentração operando na base da imposição de trabalhos forçados, de câmaras de gás e de fornos crematórios; quarto porque o holocausto exterminou cerca de seis milhões de judeus, enquanto Israel matou até agora cerca de 30 mil palestinos. Importa lembrar, porém, que não se trata de uma questão de quantidade, mas de vidas ceifadas, de histórias que estão sendo interrompidas precocemente, de cidadãos que estão sendo penalizados, castigados e punidos sem que tenham agido ou conspirado a favor desta guerra.

Contudo, de acordo com Ualid Rabah, que é presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), há sim um genocídio em curso na Palestina, e, em termos proporcionais, é possível fazer comparações históricas. Em entrevista ao UOL News, no dia 19 de fevereiro deste ano, ele apresentou alguns dados que viabilizam comparações. Disse ele: “(...) a escala de morte hoje na faixa de Gaza se aproxima dos 3% da população de Gaza, que foi a proporção da população morta no mundo inteiro quando houve a segunda guerra mundial. A escala de crianças mortas hoje na Faixa de Gaza supera proporcionalmente duzentas e trinta e seis (236) vezes as que foram mortas durante a segunda guerra mundial; (...) a quantidade de civis mortos na Alemanha, por exemplo, durante toda a segunda mundial correspondeu, (...) a cinco e meio por cento (5.5%) da sua população, hoje na Faixa de Gaza entre noventa e noventa e dois por cento (90% e 92%) são reconhecidamente civis, portanto mil seiscentos e cinquenta por cento (1.650%) a mais do que foram os civis durante a segunda guerra na Alemanha”.

Então, a despeito da polêmica acerca da possibilidade ou não de se fazer comparações, por várias razões e do ponto de vista político considero, em certos aspectos, plausível e legítimo fazer associações genéricas pontuais visando convocar às pessoas a olharem com mais precisão para a matança indiscriminada que as forças militares de Israel realizam em resposta à violência praticada pelo Hamas no território israelense. Primeiro porque, assim como no holocausto, na Palestina atualmente os idosos, mulheres e crianças são as vítimas mais lamentáveis deste conflito (para a Fepal, 70.1% dos mortos hoje são mulheres e crianças na Faixa de Gaza); em segundo lugar porque, independentemente da diferença do quantitativo absoluto de pessoas mortas naquela época e agora, a destruição em Gaza (segundo a Universidade do Oregon nos Estados Unidos, o nível de destruição da infraestrutura na Faixa de Gaza hoje é de 75%), as privações impostas, as humilhações, os bombardeios em plena escuridão da noite, os deslocamentos forçados de civis, os assassinatos, o sofrimento de mulheres grávidas (os abortos involuntários, segundo a OMS, aumentou na Faixa de Gaza trezentos por cento - 300% - desde o dia 7 de outubro), a chacina dentro e fora de hospitais etc., são tão desumanos como desumano foi o horror do holocausto, o qual, no imaginário judeu e dos cidadãos do mundo se faz presente como um fato vergonhoso, uma grande desumanidade; terceiro porque a promessa de exterminar o Hamas, contida nas operações e nas ações de soldados israelenses como “ordem” e “missão” a serem cumpridas, lembra a vontade nazista de exterminar os judeus em um passado distante de nós por apenas setenta e nove voltas em torno do sol; quarto porque assim como a extrema-direita antissemita considerou o genocídio judeu um “fato necessário”, a extrema-direita de Israel assim também considera a chacina atual na Faixa de Gaza; e quinto porque mudanças profundas e evolução positiva nos valores globais contemporâneos permitem que genocídios de hoje, supostamente “menores”, sejam dimensionados como tendo, genericamente, o mesmo tamanho que o holocausto e outros genocídios tiveram em épocas passadas.

Incomodado com o esmorecimento da opinião pública dentro e fora da internet, com a inércia, a impotência e a pouca solidariedade de autoridades, de organismos internacionais e da diplomacia mundial, o governo brasileiro, na pessoa de seu presidente Luís Inácio Lula da Silva, recentemente usou sua voz pública para denunciar o governo de Israel, conseguindo assim revitalizar o que há pouco tempo se disseminava nas interações virtuais acerca do conflito entre Israel e o Hamas e sua associação genérica com a figura de Hitler e a experiência do holocausto contra o povo judeu. Pressionar com a arma do discurso em um mundo altamente conectado, recuperar o olhar esmorecido (ou quase perdido!) nas desilusões e desesperança do dia a dia é o mínimo que se pode fazer contra forças extremistas que, nos dias atuais, tomam em suas mãos o direito de decidir, arbitrariamente, os nossos destinos como pessoas, povos e humanidade. O olhar dos olhos, conectados com o olhar crítico e imaginativo da mente, nos liberta da paralisia porque ajuda a nos posicionar positivamente na busca pela paz e pela justiça.

Talvez tenha sido para isto e por tudo isto que na 37ª Cúpula da União Africana Lula lançou mão de um discurso propositivo, enunciando para os presentes palavras consideradas moralmente “ofensivas” pelo governo de Israel e pela extrema-direita brasileira. Vejamos um trecho de seu discurso:

 

“Ser humanista hoje implica condenar os ataques perpetrados pelo Hamas contra civis israelenses, e demandar a liberação imediata de todos os reféns. Ser humanista impõe igualmente o rechaço à resposta desproporcional de Israel, que vitimou quase 30 mil palestinos em Gaza – em sua ampla maioria mulheres e crianças – e provocou o deslocamento forçado de mais de 80% da população”.

“A solução para essa crise só será duradoura se avançarmos rapidamente na criação de um Estado palestino. Um Estado palestino que seja reconhecido como membro pleno das Nações Unidas”.

 

            Depois, encerrando sua viagem de seis dias ao continente africano, em 18 de fevereiro deste ano, durante uma coletiva de imprensa concedida por Lula, ele teria dito:

“Quando eu vejo o mundo rico anunciar que está parando de dar a contribuição para a questão humanitária aos palestinos, eu fico imaginando qual é o tamanho do coração solidário dessa gente, que não está vendo que na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio. O que está acontecendo na Faixa de Gaza, com o povo palestino, não existe em nenhum momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler decidiu matar os judeus”.

 

Nestas falas, em nenhum momento se pronunciou a palavra “holocausto”. Foi o próprio Netanyahu que a pronunciou interpretando a menção que Lula fez ao nome de Hitler. Assim, talvez por razões estratégicas do jogo político-ideológico ou por se perturbar com a associação feita com a figura de Hitler, o governo de Netanyahu resolveu distorcer e desmoralizar suas falas, afirmando: “As palavras do presidente do Brasil são vergonhosas e graves. Trata-se de banalizar o Holocausto e de tentar prejudicar o povo judeu e o direito de Israel se defender.”

O horror, seja na forma industrial do holocausto ou de uma matança indiscriminada na época atual, precisa ser denunciado nos canais virtuais e não virtuais, nos meios e nos espaços que estão à nossa disposição. Como se leu, viu e ouviu, o discurso do presidente brasileiro se destina aos humanistas potencialmente letrados e não letrados do mundo inteiro, sendo ao mesmo tempo um apelo para que não se deixe de olhar nem de falar (isto é, de acompanhar e denunciar), significando ainda, simbolicamente,  uma “flechada” certeira no coração da sensibilidade judaica que impacta ou perturba não apenas ao governo extremista de Israel, mas os diversos segmentos da comunidade judaica; significou, portanto, uma “flechada” desferida, obviamente, não com a intenção de feri-los ou ofendê-los, mas de força-los a refletir, a parar o horror que não deveria sequer existir, mas existindo chegou ao ponto que não deveria chegar.

Sinais de que essa “flechada” foi bem sucedida - no sentido de abalar ou de perturbar politicamente a sensibilidade judaica, porém ao custo de provocar atritos diplomáticos - surgiram quase de imediato. Quanto a isso, destaco três eventos. O primeiro foi, naturalmente, a reação inusitada - porém alinhada com o estilo de fazer política da extrema-direita - do governo israelense de Benjamim Netanyahu. Este, demasiadamente absolvido e embriagado pela sensibilidade judaica relativa à Hitler e ao holocausto, ao invés de se explicar reagiu rapidamente desmoralizando o presidente Lula. Em seguida, ordenou ao seu embaixador de Relações Exteriores, Israel Katz - cuja estatura (e postura!) lembram um Tyrannossaurus Rex - que humilhasse publicamente o embaixador brasileiro, Frederico Meyer, com uma “reprimenda” que, na verdade, não passou de uma “aula” pública de má qualidade, uma “aula” com características de “lição de moral”. Esta “aula”, ministrada em hebraico no Museu do Holocausto com cobertura da imprensa e tudo mais, foi sobre o que o holocausto representou para os judeus. No mundo da diplomacia, atitudes como esta subverte os princípios da boa ética diplomática. O segundo evento, noticiado mais pela “imprensa independente” e pelas redes sociais, foi a divulgação de uma postagem de rabinos judeus de Israel, da Torah Judaism, supostamente produzida para reforçar a fala de Lula enunciada no continente africano. Em sua fala, Lula associou Benjamim Netanyahu à figura de Adolf Hitler. Na postagem dos rabinos, o primeiro ministro de Israel aparece apertando a mão do líder nazista alemão. Em diversos sites de notícias esta informação aparece destacada com o título “Rabinos judeus de Israel saem em defesa de Lula e dizem que Netanyahu é ainda pior do que os nazistas”. O terceiro evento, não muito perceptível fora dos aplicativos e das redes sociais, é a revitalização do olhar social global na internet para as operações militares de Israel na Faixa de Gaza, evidenciando assim que os discursos têm o poder de (re)construir a realidade. As interações, os comentários e as postagens dos internautas se revigoraram nas redes sociais depois da repercussão da fala do presidente brasileiro. Utilizando-se de algumas imagens, os internautas mostram em detalhes a destruição produzida pelas operações militares. O propósito, ao que parece, é desconstruir o discurso de Israel, negando que a invasão seja apenas para destruir o grupo terrorista do Hamas. Alguns chegam mesmo a insinuar que o propósito do governo israelense é transformar a cidade de Gaza em um monte de escombros.

As elocuções discursivas de Lula foram enunciadas no momento em que o olhar das redes sociais esmoreciam, em que Israel prometia bombardear a cidade de Rafah - em plena escuridão da noite e na semana do Ramadan -, e quando a comunidade internacional se inquietava, especialmente a Europa e os EUA que visivelmente se mostravam incomodados.

Entendo que todos partilham do sentimento e da visão segundo os quais o holocausto foi um fato vergonhoso e desumano, inclusive a extrema-direita europeia e de outras partes do mundo, incluindo o Brasil; contudo, da mesma forma que a extrema direita considerou, e ainda considera aquela desumanidade “um fato necessário”, assim também a extrema-direita israelense imagina a destruição e a matança em curso na Palestina, especialmente na Faixa de Gaza. Para não se isolar do resto do mundo, para não permanecer acusada de “pior do que os nazistas” em sua própria casa, para não se deslegitimar politicamente perante o mundo e a história, a extrema direita de Israel precisa se juntar aos humanistas e parar a guerra; se não está em condições de fazer isto, resta à ela pelo menos se equiparar à extrema-direita mundial, para a qual o holocausto foi criminoso mas “necessário”. Para tanto, deverá considerar o genocídio em Gaza um fato vergonhoso e desumano, como tantos outros representam na História da humanidade - e não apenas “um fato necessário”, “uma ordem” a ser cumprida, “uma missão” à ser realizada.

Por fim, a memória do holocausto não é licença para matar, é a lembrança legítima de uma experiência hedionda que não pode se repetir.

Autor

*Eugenio Pacelli de Morais Firmino é historiador e professor de História da Universidade Federal do Norte do Tocantins - UFNT - em Araguaína-TO.

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