Educação

Provocações sobre o ensino de gramática na escola

Divergências entre as diferentes perspectivas para o ensino de língua portuguesa têm se mostrado mais enriquecedora para a formação dos estudantes brasileiros

Ensino de gramática
Foto: Ilustrativa

Os embates provocados por divergências entre diferentes concepções gramaticais têm provocado algumas discussões na área de Letras. Há professores que defendem a persistência da gramática normativa para o ensino de língua portuguesa nas escolas do país. Essa perspectiva põe em evidência a concepção de que, aprendendo as regras da gramática, os alunos estariam aptos a produzirem textos bem elaborados.

Por outro lado, há estudos que destacam que o conhecimento das regras e estruturas gramaticais não garante que os textos não terão problemas. O impasse está construído, por que caminho deve-se seguir e o que considerar sobre essas múltiplas perspectivas para o ensino de língua portuguesa?

O ensino nas escolas, durante muito tempo, esteve fundamentado sob a perspectiva da gramática normativa. As normas de uso padrão já foram apresentadas em diversos compêndios entre os quais pode-se citar a Gramática da língua portuguesa, de Evanildo Bechara.

A concepção de língua e linguagem, sob o prisma da gramática normativa, está submetida ao fato de que o estudo das regras gramaticais seria suficiente para sanar os problemas de escrita. No entanto, isso não ocorre, como demonstram os dados das avaliações nacionais e internacionais, como Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC), conhecida popularmente como Prova Brasil e incluída no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), realizada pelo INEP/MEC.

Outros sistemas de avaliação são os realizados pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), este último sem gozar do status de avaliação sistemática, mas no qual é possível ter um raio x do nível de produção de conhecimento construído pelos alunos em relação à leitura, interpretação, análise linguística e produção de textos.

Levando em consideração os resultados dos últimos sete anos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), nota-se que houve queda do índice de alunos que alcançaram a nota mil nas redações. A quantidade de alunos que alcançaram nota máxima na redação no ano de 2020 (28 candidatos) é mais de 8 vezes menor que o registrado em 2014, quando 250 redações receberam nota mil.

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O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), divulgado pelo Ministério da Educação (MEC), aponta que 7 entre cada 10 estudantes brasileiros, ao concluir o Ensino Médio, saem da escola abaixo do nível esperado no quesito interpretação e produção de textos, sendo menos de 1% dos pesquisados os que alcançam um resultado satisfatório. 

Ideb do Ensino Médio. Fonte: Inep

Dados como esses ilustram que o trabalho com a linguagem deveria deslegitimar o estudo da regra pela regra, afinal saber as normas gramaticais do português não é garantia de aprendizado suficiente relacionado às práticas de uso da linguagem nas diferentes esferas sociais, sobretudo quando o assunto é escrever bons textos.

Depois de tantos debates a esse respeito, as práticas de ensino e de aprendizagem foram redimensionadas na escola, tornando possível o ensino de língua portuguesa a partir de perspectivas que incluem o trabalho com os gêneros do discurso, perspectivas dialógicas para a produção de textos na escola no que se referem à aderência às práticas de linguagem de dada esfera da comunicação, com inclusão da refacção de texto como ato reflexivo de uso da linguagem, buscando minimizar as dificuldades dos estudantes, além do desenvolvimento de atividades de leitura no contexto de sala de aula, que visem ampliar o conhecimento de mundo dos estudantes.

A gramática normativa

O ensino de gramática normativa reinou, majoritariamente, nas salas de aulas brasileiras até o final da década de 1980, quando outras perspectivas de ensino de língua começaram a ser discutidas nas universidades. O ensino de regras da língua portuguesa constitui o eixo central dessa perspectiva. Assim, caberia ao professor de português o trabalho de apresentar o conteúdo das aulas, exercitando-o a partir de frases nas quais os alunos pudessem treinar normas e empregos gramaticais. Embora essa perspectiva tenha sido muito questionada, ainda reverbera na prática de alguns professores, sendo constitutiva das salas de aulas nos dias de hoje.

O professor da Universidade Federal do Tocantins, João de Deus Leite, defende o ensino de gramática normativa na escola, no entanto, destaca que é preciso refletir sobre algumas questões. A primeira de que a partir da década de 1980 houve o entendimento enviesado, distorcido, de que o ensino de gramática normativa deveria ser combatido, “quando, na verdade, os documentos oficiais (Parâmetros Curriculares Nacionais, PCNs; Base Nacional Comum Curricular, BNCC, entre outros) apregoam o ensino de gramática normativa, talvez com outras terminologias como prática de análise linguística, por exemplo. A depender do contexto e da situação da língua em uso, precisa-se de um registro formal, e o acesso que o aluno tem a esse registro formal é na e pela escola; sobretudo se se considerar a redemocratização do ensino, quando o perfil de aluno que chega à escola, requer da instituição a garantia das aprendizagens, e o uso padrão da língua faz parte dessa construção desse conhecimento gramatical”, declara.

Defensor de uma perspectiva consciente de ensino da gramática normativa na escola. Foto: João de Deus/Arquivo pessoal

João defende o ensino de Gramática normativa, mas pondera que “é preciso que se lance luz a como fazer isso, mesmo porque não há receita; porém, há contradição, visto que o modo, isto é, a perspectiva de ensino não deve desencadear no estudo da regra pela regra. O uso da língua requer situações formais e o aluno precisa transitar por esses espaços; que seja capaz de participar, com competência, das diferentes práticas sociais da língua em uso, e não podemos esquecer que uma dessas práticas tem a ver com o registro formal. É nesse sentido que penso sobre a eficácia e o alcance que esse ensino pode ter”, completa.

Por outro lado, Luiz Roberto Peel, filólogo, também professor da UFT, campus de Araguaína, posiciona-se contra o uso da gramática normativa para o ensino de língua portuguesa nas escolas. Para ele, “as transgramáticas, transdutivas e alagmáticas, deveriam ser experimentadas por todos e em todas as direções”.

A concepção de transgramática

Peel diz que “as transgramáticas são, de fato e de verdade, as únicas gramáticas que existem fenomenologicamente”. E complementa: “O ponto de partida de toda experimentação transdutiva e alagmática é o próprio indivíduo; logo, as experimentações desse tipo, no que se refere à produção linguística relacionada à alfabetização e ao letramento, devem ter os textos menores dos infantes como fonte de experimentação – e, é claro, as suas gramáticas familiares (ou maternas). Se a criança ainda não escreve, devemos usar seus desenhos; se ainda não desenha, seus enunciados orais; se ainda não fala, seus gestos e suas danças”, explica

O filólogo destaca que a gramática internalizada é objeto técnico; já as gramáticas descritivas, gerativas, funcionais e os vários ramos da Linguística são objetos tecnológicos ou saberes científicos. E, para experimentar um objeto técnico não podemos usar objetos tecnológicos, só atrapalharemos nossos infantes com especulações que não o ajudarão a viver as suas primeiras criações ou invenções textuais.

O indivíduo é o ponto de partida de toda experimentação transdutiva e alagmática. Foto: Luiz Roberto Peel / Arquivo pessoal

Para Luiz Roberto, bebês e crianças irão desenvolver suas textualidades, ampliando percepções até chegarem a textualidades padrões a partir de transformações, mutações e percepções próprias; ou não, caso suas histórias de vida caminhem para produções textuais livres e para outras variantes. “O erro e a errância fazem parte desse processo, sempre como rizomas, sempre como linhas de fuga; o contrário, a fixação de textualidades padrões como únicas e certas, levará o indivíduo a perder sua capacidade mutante, o que a escola tem feito e repetido ad infinitum”.

“Perceptos são conjuntos de sensações: a musicalidade dos bebês, a sua gestualidade, os seus balbucios, os seus abraços, os seus desejos e os seus textos mais lúdicos – tudo isso é que deveria ser vivenciado no processo de aprendizagem ou de experimentação escolar das linguagens, das línguas e das gramáticas” (Luiz Roberto Peel).

 

E por que mutantes? “Somos, destarte, expressões mutantes, traços soltos, caminhos híbridos, linhas livres, metamorfoses de afetos e de perceptos; ou deveríamos sê-lo. Somos, para Espinoza e para Simondon, relações, potências e modos; não somos substâncias; consequentemente, sendo relações e potências, constituímo-nos a partir de modos ou graus – modos de existência, modos de compreensão e modos de significação (no mundo, no intelecto e nas linguagens). Somos linhas e meios, somos afirmações e valores, somos sentidos e significados, somos incorporais e corporais; logo, devemos assumir nossas diferenças e nossas mutações, para que sejamos paradoxalmente íntegros e quebrados (nossa inteireza deve ser igualmente ética, estética e lógica; assim como nossa quebradeira). Somos, destarte, linhas, segmentos e traços, em todas as nossas formas de expressão, sejam elas linguístico-gramaticais, musicais, visuais, teatrais, ou de qualquer outra espécie; e, portanto, devemos traçar nossas vidas nós mesmos, explica Peel.

 

Para concluir a concepção que apresenta, Luiz Roberto apresenta ao leitor deste artigo o que denomina alguns devaneios ou traços lúdicos deste nosso processo de formação, como síntese assintética e paradoxal. Peel diz que “é preciso mudar a conduta nas salas de aula de língua portuguesa, acrescentando a arte de modo alagmático, e não como simples disciplina ou matéria; é necessário, igualmente, que se compreenda o que é a transdução mutante e também alagmática; pois nossos infantes estão cansados da falta de afetos, da falta de signos e da falta de perceptos”, afirma.

As discussões no campo acadêmico têm chegado paulatinamente às escolas de todo o Brasil a partir das diversas formações de professores que ocorrem no âmbito nacional, estadual e municipal, além daquela que ocorre no contexto dos cursos acadêmicos para os novos professores. Essas ações mitigam as assimetrias de ensino e de aprendizagem que determinadas concepções constroem quando apenas um tipo de perspectiva gramatical se impõe ao trabalho com a língua portuguesa na escola. As diversas teorias devem dialogar no trabalho docente, de modo a produzir mais efeito na formação dos estudantes, sejam na esfera acadêmica, ou na educação básica.

Autor

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Carlos Borges Júnior* é Doutor em Linguística e Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins, UFT, campus de Araguaína