Naiane Reis*

Certa vez, alheada à situação política do Brasil e pouco familiarizada com o aparelho de TV, ouvi algo que me parecia incompreensível: "a gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte". Parecia-me interessante, apesar de ainda não saber o que significava a última coisa.

Nessa mesma época, ouvia de meu pai, pequeno agricultor, que devíamos odiar o Lula, pois aquele era um político capaz de trazer a miséria para o país. Ele queria mudar a reforma agrária e acabaria com o direito à terra e à posse. Não entendia nada disso. Apesar do discurso assustado de meu pai, já vivíamos na extrema pobreza e não tínhamos terra.

Nada entendia de política. Na eleição de 2002, chorei ao ver que o tão temido PT tinha chegado ao poder. Fomos para casa com um enorme peso nas costas. Parecia que a noite, especialmente naquele dia, era mais escura, como uma espécie de prévia do que estava por vir. Com um sofrimento inenarrável, pensava: meu Deus, como podemos viver com ainda mais sofrimento?

Hoje, parece haver ainda mais forte um discurso de medo e ódio, apesar de 12 anos de governo petista. Meu pai ainda acha que o PT é a maior desgraça do país, apesar de ser constantemente beneficiado pelos programas do atual governo. Tal comportamento, aliás, parece refletir em um cenário generalizado no país: aqueles que se beneficiam das políticas de incentivo, correção, apoio social, são os sujeitos que fazem ecoar discursos mesquinhos e autodestrutivos. Do mesmo modo que meu pai, um assentado, laçava discursos odiosos às políticas de distribuição da terra ("dividir fazenda de gente trabalhadora para um bando de vagabundos"), os cidadãos, de modo geral, condenam políticas públicas que beneficiam a maioria (bolsa de distribuição de renda são esmolas para "viciar" o povo; cotas são para gente burra que não "merecem" estar nas instituições de ensino; etc de um monte de atrocidades desse tipo).

Os discursos de reprovação não surgem na periferia, na boca dos desfavorecidos. O medo de ver uma mudança no cenário social emerge de uma classe média tão bem definida por Marilena Chauí: “a classe média é uma abominação política, porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante".  Para tal segmento da população, deve haver uma manutenção da situação econômica, política e cultural: que os extremamente ricos continuem ricos; que os extremamente pobres continuem pobres; que os sem acesso a etc continuem sem acesso...

Provavelmente, pouco mudará nos próximos anos. Minha juventude e meus anos de estudante apaixonada e envolvida já estão acabando. Possivelmente, na minha maturidade, verei os bons resultados (de uma formação política) dos investimentos na parcela da sociedade que serve de coro ao discurso dos dominantes. Por enquanto, resta-me ver e ouvir com pesar uma direita não-branca, não-rica e não-elitizada. Uma direita brasileira que, elogiosamente, podemos chamar de ignorante, porque não desvela os discursos a partir dos interesses da sua classe, ignora a história política do país e consegue, na contramão de todo bom senso, em alguns momentos manifestar-se até pelo retorno da ditadura. 

Perfil da autora

*Naiane Vieira dos Reis é Mestre em Letras pelo programa Ensino de Língua e Literatura pela Fundação Universidade Federal do Tocantins com pesquisa inserida no campo da Linguística Aplicada (2014). Graduada em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Federal do Tocantins. Foi bolsista do CNPq na modalidade PIBIC durante dois anos, pesquisando o ensino de leitura em material de formação de professores com embasamento na teoria semiótica discursiva.