Havia um tempo em que tudo era eterno.
Foto: Ilustrativa

Havia um tempo em que tudo era eterno. As tardes tinham a duração de semanas. A mãe ralhava sempre a mesma zanga reclamando da roupa mal passada, da TV ligada em desperdício de tempo daquela tarde que nunca acabava. O sol avançava pela janela e ela só tinha que esperar que quedasse atrás do morro da casa de dona Maria para que pudessem comemorar o entardecer brincando na rua, todas as crianças e mães em comemoração pelos dias que duravam.

Ninguém morria naquela rua. Seu Manoel passava com seu táxi. Dona Almerinda com suas trancinhas presas, discretíssima, a caminho da igreja. Mirian aguardava Aroldinho voltar da Escola Técnica, lindo em seu uniforme, galante. Despejava baldes de um perfume verde, muitos cremes no cabelo, muita preparação para esperar o moço passar e poder lhe fazer o aceno breve, em saudação elementar. Poucos carros, sem asfalto, a rua se transformava em poeira vermelha. A mãe explicava que já haviam tomado banho, que deveriam sossegar-se. Jamais.

Eram sempre os mesmos lugares para o esconderijo. Ficar atrás das rodas do caminhão de gasolina do seu Valter, a mureta de energia da casa da Marina, um poste, um portão. Correr, correr, a energia também era infinita, no anoitecer de noites que não acabavam. Havia ainda tempo para espiar estrelas, sem entender, desde então, qualquer de suas classificações e traçados, nomes de constelações. Só a ignorância de ver bastava.  

Escrevia. Letra miúda, lápis bem apontado, só havia que seguir a gramática: eis todo o desafio. Não intimidava. Também não havia pretensões de ser escritora, ou de ser qualquer coisa. As coisas não se transformavam. As pessoas apenas eram e para sempre. Seu Argemiro poderia tocar seu bandolim: eis toda a novidade, porque, trabalhador, ausentava-se muito. Tratorista.  Era possível gastar toda uma semana, repetindo o mesmíssimo exercício no violão, até que saísse perfeita a performance. Ou nem tanto. E tecer tapetes e tapetes, depois de toda ocupação mais séria de cuidados com a casa, porque o tempo precioso deveria ser todo ele ocupado. Não havia esperas nem faltas. Não havia Ulisses, nem era ela Penélope. Apenas tecia as tardes, para que a divindade que regia tudo fosse devidamente reverenciada e lhes desse o dia seguinte, mesmíssimo.

E então, porque o tempo era infinito e não havia nem falta, nem medo além daquele trazido por história de assombração, escrevia porque tudo era possível dizer. E olhava as estrelas e não lia o futuro.

Autora

É Professora do Curso de Letras da UFNT; coordenadora do ProfLetras; editora-chefe da Revista EntreLetras (Araguaína). 

Luiza Helena Oliveira Silva