Educação

Elem e a Acavernia

Homenageamos nossa agora saudosa Elem Kássia Gomes. Uma pesquisadora que partiu precocemente de nossas vidas e da vida de todos que a amavam ou admiravam.

Elem Kássia Gomes era mãe, professora e pesquisadora.
Foto: Reprodução Facebook

Chegar a um curso de pós-graduação stricto sensu, principalmente de doutorado, para a maioria dos brasileiros constitui uma conquista ímpar e muitas vezes penosa. Uma pesquisa nesse nível requer renúncia de algumas outras possíveis conquistas pelo meio do caminho, ou mesmo de adiamento de benfazejas comemorações em medida compensatória.

Quando fazia mestrado na Unicamp, assisti pela primeira vez a uma banca de doutorado. Entre defesa nas arguições contundentes e testemunho nas considerações finais do referido evento, vi a então ex-doutoranda apontar na plateia para o filho de 4 anos e meio, gestado, nascido e crescido paralelamente ao nascimento, desenvolvimento e defesa da tese. O momento era de dupla diplomação na academia, manifesta, porém, pela trivial (mas estupenda) sensação de alívio, materializada em algumas lágrimas contidas nos olhos civilizadamente recuperados de breve afogamento.

Quem vê apenas o último ato de peça como essa, fomentada e administrada pela missão de qualquer boa universidade em gerar e, de certo modo, gerenciar o conhecimento, ignora o processo que leva o atleta ou o ator a este podium ou a este teatro monumental no qual experiências das mais diversas e complexas são sobrepujadas ou maquiadas para que a performance seja a melhor possível no espetáculo do “agora vai!”.

No percurso, sempre ou geralmente invisível à plateia do concerto final, há, por vezes, uma próspera impressão de impotência quando os dados parecem mudos, a teoria, inútil, o raciocínio, apático, a intuição, caduca, o texto, desengonçado; há um sentimento de frustração quando a pesquisa não flui, amplificando a sensação de angústia, de desespero quando o prazo, como um rigoroso oficial de justiça a entregar a intimação, estapeia o sujeito já bastante atordoado. Cada um procura restabelecer o ânimo como pode, bebendo, rindo, chorando, rezando, conversando, dançando, cantando, trolando ou se abstraindo de outro modo da caverna labiríntica por onde enveredou.

É uma trajetória por espaços de reflexão, de se forjar o novo a partir do conhecido e do desconhecido, de expansão de horizontes promissores, de novas relações intelectoafetivas, também por espaços de se experimentar o inferno da loucura do vazio, de flertar com a insanidade ou de se aniquilar. Daí que chegar à defesa tem sim, às vezes, essa sensação de se ter conseguido achar o caminho da luz naturalmente fugidia nos meandros dessa esfera ou dessa fera, a Acavernia.

Não obstante, uma vez vencida essa etapa, o desafiado olha para trás como o infante que bagunçou a organização da sala de estar pela ânsia de extravasar sua energia, e, embora esgotado, conseguiu finalmente juntar os brinquedos despedaçados e arrumá-los no armário de onde os tirou, sentindo-se então gratificado pela aprovação que lhe chega mediante o sorriso generoso e contagiante da mãe.

Mas há também, para outros sujeitos, percursos mais amenos nos desafios acadêmicos e científicos. Entanto, temos a impressão de que, nesses casos, há sempre um anjo torto, daquele tipicamente drummondiano, ávido por liberar seu hálito belicoso, entulhando então de outras armadilhas a vida de qualquer pesquisador feliz.

Imersos nesse caldo ou emersos desse caldo é que homenageamos nossa agora saudosa Elem Kássia Gomes, que foi atleta a nadar na contramão e também personagem a atuar pari passu do que, respectivamente, pincelamos anteriormente, de tão entusiasmada que era com os desafios do doutorado, pois, apesar de não os negar, ainda de resguardo no pós-parto, queria estar ao computador arrematando sua narrativa de pesquisa, no que obviamente foi desaconselhada por familiares e pela amiga Camila. Uma pesquisadora que partiu precocemente de nossas vidas e da vida de todos que a amavam ou admiravam.

Ela que, graduada e pós-graduada (mestrado e doutorando-se) pela UFT-UFNT, docente da Educação básica, nas palavras de seu colega Álvaro Fonseca, funcionário da UFT e doutorando do PPGL, “foi pessoa generosa”. Destacando ainda Álvaro que “Ano passado, num dos seminários de orientação em que participamos remotamente, lembro que Elem nos falou acerca da sua vivência e do seu interesse em se aprofundar no modo como alunos e professores discursivizavam a iniciativa ‘Projeto de Vida’, da qual ela participou ativamente em 2017, numa escola pública de Araguaína, onde era professora.

Percebi o quanto Elem era generosa ao nos falar acerca da importância de se ouvir os alunos e ajudá-los a projetar um futuro que (possível ou utópico) fosse sustentado na cumplicidade entre a escola e a comunidade. Ao mesmo tempo em que apresentou sua pesquisa, Elem também nos guiou em nossos projetos, inspirando-nos a não desistir da luta pela educação pública, pela ciência e, sobretudo, pelas pessoas.”.

Para Aliny Kássia, também funcionária da UFT e doutoranda do PPGL, cujo sentimento em relação à Elem se traduz por eloquente admiração de sua trajetória acadêmica, uma das imagens que lhe estará sempre na memória, relembra ela, é que “sempre a via na biblioteca, sorrindo, apressada, estudiosa. Elem tinha urgência em viver, urgência em cumprir os seus objetivos.  E cumpriu! Foi aluna exemplar, uma mãe dedicada, uma professora apaixonada. Admirava e continuo admirando”.

Ana Cláudia Martins, ex-diretora da DREA e doutoranda do PPGL, tendo convivido com nossa homenageada tanto no nosso grupo (meus orientandos de doutorado) como em encontros de formação continuada promovidos pela SEDUC, destaca que “Elem foi do início ao fim um paradoxo. Tinha a força da mulher e era mãe com doçura. Foi determinação, comprometimento e mão amiga. Elem era vida, alegria e vivacidade.” Ana deseja que Elem, a quem via como “pessoa de muita luz, cujas agruras da vida buscavam, sem sucesso, apagar seu brilho, encontre agora a infinita paz!”. 

Docente da UFMA, colega de doutorado e tendo desenvolvido uma amizade de irmã, Camila Rodrigues nos traz também um registro tocante sobre nossa saudosa Elem: “Elem kássia foi uma representação de força feminina, lutava com toda garra para marcar seu espaço e conquistar novos horizontes. Sempre sorridente, iluminava com seu sorriso por onde passava. Uma alegria que até nos confundia pelos seus reais sentimentos e emoções. Rainha do repertorio linguístico mais rebuscado. Ah, como sabia se posicionar, argumentar. Dona de uma história marcada de lutas e conquistas, de poucos parentes, mas de um leque de amigos que compuseram sua família.

De um lado, uma mulher leal, amiga, intensa, romântica, companheira, uma mãe leoa, e, por outro lado, uma professora-pesquisadora dedicada, compromissada, não tinha medo de ousar e romper paradigmas metodológicos. A perfeição era sua única escolha. Elem nos ensinou que ser professor é muito mais do que transmitir/mediar um conteúdo. Acolhia seus alunos como seus próprios filhos. Era uma tutora e conselheira de muitos jovens. Amava a educação. Estreitava a relação entre pesquisa, ensino e extensão. Sua ciência foi o giz de sala de aula.

Defensora ferrenha do ensino público e da qualidade de vida dos professores da educação básica. Encarava a vida como uma montanha russa e por inúmeras vezes recomeçou sua história na busca do melhor para seus filhos. A literatura foi sua paixão e com maestria recitava poemas e poesias. Leitora. Contadora de história. Poetisa. Escritora. Hoje nos deixa as melodias, rimas, estrofes, conselhos para seguir em frente. Sempre estará viva em nossas memórias.”.

Docente da UFT e do PPGL, Luiz Roberto Peel, muito comovido, nos informa que “nunca esquecerá os 12 anos que passou contemplando ocasionalmente o sorriso e o riso da Elem.”.

Elisa Alencar, docente de língua inglesa da UFT e professora da Elem desde a graduação, fez questão de nos compartilhar: “Fui professora da Elem Kássia ainda na graduação. Lembro-me dela menina adolescente, sorridente, participativa, responsável sempre! Era uma moça linda, de sorriso largo e que mostrava muita força e vontade de vencer na vida.  Ela se formou e, depois disso, soube que era uma excelente professora. Tenho algumas cenas da Elem fora da Universidade que me vem à memória agora. Uma vez a vi sentada na arquibancada da Praça da Bandeira, num festival de música da escola na qual ela já estava trabalhando. Estava bonita, de calça jeans, cabelos soltos, tênis All Star. Observei –a e achei tão linda! Outra vez, encontrei- a no supermercado, grávida e linda! Contou-me quem seria o padrinho da Iza, cheia de sorrisos e cheia de vida!

Mais adiante nos falamos em uma rede social e ela me indicou uma senhora para me ajudar com o trabalho doméstico, nem sei como nós começamos a conversar. Foi uma conversa longa e divertida. Falamos sobre a vida, sobre filhos, sobre as dificuldades dela com a filha pequena e outras coisas. Ali já era a Elem mulher, madura, mãe, professora! Depois disso, nunca mais tinha visto a Elem pessoalmente. Eu sabia que ela brilhava, mas observava de longe! Fez mestrado e já estava no doutorado!

Meu coração doeu quando eu soube sobre sua passagem. Doeu muito, ainda dói.  Um pedacinho de mim se foi também, porque somos feitos de pedacinhos minúsculos quase imperceptíveis das pessoas que passam pelas nossas vidas e que em algum momento tivemos carinho e ajudamos de alguma forma. Agora ela vai brilhar no céu. Sei que ela continuará seu brilho. Lá de longe. Vou ficar aqui enviando coisas boas para ela, como eu sempre fiz! Fique em paz, Estrela linda!”.

Outro professor a desenvolver grande admiração e carinho por Elem foi João de Deus Leite, docente da UFT-PPGL, que nos relata: “meu primeiro encontro com a Elem se deu no seio de uma disciplina sobre ‘Análise de Discurso e ensino’, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Letras: ensino de língua e de literatura (PPGL) no bloco H, da nossa unidade Cimba. Ela, de modo meigo e cativante, veio me dar satisfação do fato de sempre levar a sua filha para as nossas aulas de AD. Na justa medida, procurei corresponder à sua meiguice. Brinquei com ela que só deixaria se pudesse, anos mais tarde, orientar a sua filha. Já doido para saber o nome de minha futura orientanda perguntei a ela: ‘- Como se chama a sua filha?’.

Ela, com um sorriso igualmente cativante e meigo, disse-me: ‘Isa’. A aula transcorreu normalmente, com a Isa ali, brincando e desenhando com seus lápis de cor e muitos papeis preparados por aquela mãe cuidadosa e atenta. Duplamente, cuidadosa e atenta: ao brincar de sua filha e às interlocuções que o professor estabelecia com a turma. Houve uma aula que faltaram a Elem e a minha futura orientanda Isa. Ao final, soube que a avó materna da Isa estava hospitalizada, vítima de um AVC. Na aula seguinte, lá estavam a mãe e a filha aparentemente concentradas nas discussões sobre AD. Digo aparentemente, porque sabia que aquele zelo com a filha e com a disciplina era fruto de uma criação dedicada.

Em minha terra, costumamos designar esse zelo a partir do seguinte enunciado: ‘Essa menina tem lastro, vem de berço’. A partir desse dia, sempre passei a perguntar pela avó de Isa. A resposta era de que ela estava se recuperando, ora mais, ora menos. Em um sábado à tarde, fui informado pela Camila, uma grande amiga da Elem e, também, da Isa, que a mãe da Elem partira. Fiz uma visita, na mesma hora, para levar um pouco de carinho e tantos outros afetos para elas. Confesso que me preocupei muito com a Isa. Na minha cabeça, um pensamento só imperava: ‘a Isa não vai poder mais desfrutar da vivência com a avó’. Em um jogo imperioso de transferência, eu me vi no lugar da Isa, pensando o que seria de mim sem a minha convivência com a minha avó materna. As avós, em geral, (re)atualizam bons momentos na vida de seus netos.

Passei muitos dias atordoado com esses e outros pensamentos sobre a nova situação da Isa; desejei que a minha futura orientanda ficasse muito bem. Após a disciplina, passei a sempre estar em contato com a Elem por meio do Whatsapp, sempre querendo saber da Isa. A Elem sempre me felicitava em meus aniversários. Sempre afetuosa e cativante. Ao ser surpreendido pela triste e não simbolizável partida da Elem, novamente, os pensamentos sobre a Isa retornaram. A impotência tomou conta de mim, pois ora prestamos para amenizar o sofrimento das pessoas e os nossos, ora não conseguimos alcançar o outro. O meu pensamento sobre a Isa segue... O meu pensamento sobre a Elem segue... Ainda sigo tentando decifrar, se é que é possível, os meandros da vida e seu labirinto inescapável...”.

Também fui professora da Elem na graduação. Atualmente, como orientadora de sua pesquisa no doutorado, chamava-me atenção o ethos de pessoa segura, tranquila e determinada que suas atitudes se me desenhavam. Como mulher e profissional, Elem era bastante empoderada, como mãe a mim se configurava como um oximoro, uma leoa meiga e carinhosa. A meu ver, Elem, de um jeito próprio, venceu a Acavernia de muitos de nós.
 

Sobre a autora

*Janete Santos é professora associada da Universidade Federal do Tocantins, UFT, campus de Araguaína.