MEC insiste em prosseguir com calendário do Enem 2020, mesmo campanhas para adiá-lo.
Foto: Ilsutrativa

Em 1967, ainda no cenário do pós-guerra e durante regimes totalitários, o escritor francês Guy Debord, já dizia que “num mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso”. De influência marxista, sua principal obra “Sociedade do espetáculo”, tem influenciado a formação crítica ao redor do globo.

Por indicação de uma amiga jornalista, quando refletíamos questões pertinentes à esfera política, conheci a obra há alguns anos. Nos últimos dias, a memória dos escritos filosóficos de Debord vêm me incomodando, principalmente pelo substantivo “espetáculo”, numa crítica sensata à dinâmica da sociedade contemporânea.

Suas teorizações escancaram os bastidores e implícitos das engrenagens de uma sociedade que sobrepôs a aparência à essência, as coisas aos seres, e as evidências às experiências, por fim o registro ao sentido.

À primeira vista você até pode se escandalizar e discordar da visão expressa na obra, mas não pode negar a debilidade das esferas públicas e privada das relações sociais, apontadas pelo autor.

Voltando um pouco mais na história da humanidade, faço um contraponto com o Império Romano e sua política do “pão e circo” para manipular o povo numa espécie de cegueira em relação aos problemas sociais de então, o que assim como Debord, podemos definir como um verdadeiro espetáculo.

A necessidade de falar sobre relações apenas aparentes, superficiais, da modernidade líquida de Bauman, "um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”, vem desse cenário de hipocrisia que vivenciamos.

Nossa era enfrenta uma crise severa, a da (des)informação. Nesse cenário de contágio global da Covid-19, além dos problemas de ordem sanitária, estamos mergulhados na pandemia da ilusão, do espetáculo e da hipocrisia. Como o sociólogo da modernidade líquida adverte, “na sociedade contemporânea, emergem o individualismo, a fluidez e a efemeridade das relações”.

Enquanto milhares morrem dia a dia, outros milhões padecem nos corredores e macas do sistema de saúde estrangulado, o sistema privado brasileiro apela na mídia a necessidade de salvar os CNPJ’s, evitar a falência de empresas com frases e chavões, como se o dinheiro viesse em primeiro lugar, e vem, para uma pequena parcela da pirâmide social.

Enquanto isso, na esfera pública, não vemos a presteza na liberação do auxílio emergencial à população de baixa renda como vimos no socorro aos bancos. Mas o que quero chamar a atenção é para a preocupação do setor público com as estatísticas.

Além de querer convencer a grande massa dos milhões investidos, em tempo recorde, em equipamentos para o atendimento em saúde, outro ponto grave nesse momento é o faz de conta que observamos na educação. Com o ano letivo severamente comprometido, governos dos 26 estados mais do Distrito Federal, defendem a todo custo, que a aprendizagem dos alunos está fluindo às mil maravilhas. Diariamente, lançam propagandas com crianças e jovens muito felizes “aprendendo” com um computador ou celular à sua frente, em plataformas virtuais criadas especialmente para “garantir a continuidade nos estudos”.

Não quero aqui, negar a eficácia dos recursos digitais com fins didáticos. Pelo contrário, defendo a necessidade de se investir em ferramentas tecnológicas para dinamizar a rotina das escolas públicas. O que chamo a atenção é para o espetáculo que se monta na grande mídia sobre uma falsa realidade em torno das oportunidades de aprendizagem da grande parcela que se concentra na base da pirâmide social.

Está errado ofertar alternativas de estudo durante o período de isolamento social? De certo que não. O erro reside na falta de investimento ao longo dos séculos. Antes de generalizar uma metodologia de ensino, sempre foi necessário ofertar condições de acesso aos recursos educacionais.

Em uma matéria divulgada em 23 de março, sobre o ensino remoto durante a suspensão das aulas, o jornalista Marcelo Valadares, do portal G1, apresentou pesquisa divulgada em 2019 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). De acordo com o estudo, “58% dos domicílios no Brasil não têm acesso a computadores e 33% não dispõem de internet. Entre as classes mais baixas, o acesso é ainda mais restrito. Nas áreas rurais, nem mesmo as escolas têm acesso à rede mundial de computadores: 43% delas afirmavam que o problema é a falta de infraestrutura para o sinal chegar aos locais mais remotos”.

 Mesmo com dados precisos sobre os recursos disponíveis nos lares dos alunos das escolas públicas nos quatro cantos do país, o poder público silencia sobre as alternativas de inclusão dessa parcela excluída das plataformas digitais. Mesmo diante do apelo pelo adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio, Enem, pelo Ministério da Educação, o cronograma do maior vestibular do país segue seu curso normal.

E o que as secretarias de Educação estaduais fizeram em relação a isso? Apoiaram as campanhas divulgadas pelos estudantes para tentar garantir-lhes tempo hábil e oportunidade de se preparar? Não! As secretarias pressionam as unidades escolares para participar de uma corrida desenfreada por números. Divulgam rankings de inscritos para fomentar o espírito de competitividade onde o prêmio é ser o destaque como escola, município, ou regional com maior adesão à proposta excludente do MEC.

Mas, e os alunos? Como irão estudar até a prova em novembro? Ah, isso não importa, o que está em jogo são as estatísticas, o espetáculo! Temos de garantir o maior número de inscrições nos programas que as secretarias estão ofertando. Aprendizagem, é papel da família, está na Constituição. Sim está, mas cobrar da família aparelho com acesso à internet para que seu filho estude em casa, enquanto não se tem o que comer, é de uma crueldade sem precedentes.

 Por que digo tudo isso? Por que sou professora da rede pública. Trabalho em uma escola da zona rural, e boa parte de meus alunos não tem uma alimentação minimamente balanceada, quiçá aparelho smartphone com acesso à internet. Escrevo tudo isso porque estou engasgada com tamanha hipocrisia divulgada na mídia. Pela pressão ideológica que meus alunos têm sofrido, gerando angústia não apenas neles, mas em mim, que tenho dedicado os últimos dias a fazer as benditas inscrições para que mais uma vez, eles não sejam excluídos ao menos das estatísticas.

Autora

Kayla Pachêco Nunes é professora da rede estadual do Tocantins e mestranda pelo Profletras –UFT

REFERÊNCIAS

Coronavírus faz educação a distância esbarrar no desafio do acesso à internet e da inexperiência dos alunos. Acesso em 16 mai 2020.

DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.

Zygmunt Bauman - o pensamento do sociólogo da "modernidade líquida. Acesso em 16 mai 2020.