Luiza Helena Oliveira da Silva*
Escrevo essa crônica de modo possivelmente irresponsável e leviano, como o fazem aqueles sujeitos que se intrometem na conversa alheia, “pegando o bonde andando”, pondo-se a fazer apreciações sem devidamente estar situado na questão. Poderia, para evitar parte da inconveniência, ler o que se tem publicado na mídia brasileira, informando-me com mais propriedade do assunto, mas outras urgências me tomam a atenção. Apesar disso tudo, sou movida pelo irrefreável desejo de escrever sobre o assunto, com os riscos todos que isso encerra, aproveitando um breve intervalo nos textos acadêmicos que solicitam meu empenho de trabalhadora.
Ontem, comecei a ver uma série de imagens no Facebook, montagens diversas com a figura da banana. Havia uma espécie de mobilização nas redes sociais em denúncia do racismo, de que teria sido alvo um jogador brasileiro. Atiraram-lhe uma banana, gesto que além de agressão física implicava agressão simbólica, atualizando o modo como racistas se referem aos negros no país. Ao tomar da banana e comê-la, o jogador toma uma posição, como quem ignora a intenção primeira, subvertendo-a. Age, como se pudesse, no gesto, conferir outros sentidos, dando mostras de não se deixar abalar. Reage, no impulso, ao que poderia apenas abatê-lo ou subjugá-lo, como deveriam ser as intenções do agressor. Não se vale de palavras, mas de uma atitude de quem despreza a intenção do outro, como se então respondesse: “Quer me atingir? Não vai conseguir.”
Lembro a proposta antropofágica de Oswald de Andrade: o outro pode ser comido. A suprema rejeição é a de vomitar. Comemos o que nos fortalece e, para tal, os rituais antropofágicos indígenas presenciados no período do Brasil colonial ensinavam que se come o outro por respeitá-lo, por reconhecer a sua coragem, a sua bravura, como suprema forma de admiração por sua identidade. O outro, então, nos alimenta, nos impulsiona, dissolvendo-se em nosso corpo como boa energia. O outro pode ser nosso inimigo, mas é bravo, é forte, filho do Norte, como diriam os versos de Gonçalves Dias. Oswald retoma a prática em seu manifesto em defesa da nacionalidade: não recusaríamos a alteridade, no caso, a do estrangeiro e sua cultura, porque ela nos faria mais fortes, uma vez transfiguradas como alimento. Não há, assim, imitação ou mera recusa, mas uma forma de interação que prevê transformações do próprio eu, ainda inacabado, aprendendo com o diferente.
A banana que vai servindo de símbolo de recusa ao racismo, contudo, torna-se dificilmente digerível. O outro não é bravo, nem forte, mas covarde, misturado à massa anônima dos torcedores que agem como supremos destinadores, a exigir a performance sempre surpreendente dos jovens jogadores. A justificativa seriam os salários: o outro deve fazer gols, porque bem pago, porque o destinador que paga para estar nos estádios quer a performance admirável. O sujeito jogador, então, é um quase objeto, que se vende e se compra, que tem um prazo de duração, que se substitui, e que pode ser agredido com palavrões e bananas, atualizando o que pode haver de pior na nossa cultura, ou na humanidade.
Não posso “curtir” as mensagens com as muitas bananas. Não consigo me reunir a Luciano Huck e Angélica. Não há um “lamentar” nas páginas do Face, porque lamentar parece carecer sempre de justificativas e o ethos de internauta não prevê grandes debates, mas a euforia da aceitação: todos em uníssono repetindo as mesmas coisas, numa grande assembleia sem muita abertura para a divergência ou exercícios retóricos. A ideia é simples: repetir, parafrasear, multiplicar, ecoar.
O raciocínio para a recusa poderia ser explicado pelo que argumenta a analista do discurso Eni Orlandi a propósito de uma faixa numa universidade em tempos de eleição. O enunciado da faixa era “Vote sem medo”. Conforme Orlandi, dizer “vote sem medo” é diferente de dizer “vote com coragem”, porque a primeira fórmula atualiza os sentidos do medo. E os discursos do medo têm sua memória, tão mobilizados no contexto político do país pelos que o viam ameaçado com o comunismo, como analisa ainda Bethania Mariani, diante de jornais brasileiros nos anos de chumbo. A banana, nesse caso, atualiza o discurso racista, do mesmo modo como algumas igrejas, em vez de falarem de Deus, dão atenção ao diabo e ao sofrimento que espera o pecador no inferno.
Eu prefiro um discurso que fale de Deus e, por isso mesmo, essas bananas me chegam como tristes figurativizações do discurso racista, atualizado, hiperbolizado, recorrente. As bananas, as metafóricas, enfim, me entristecem.
*Luiza Helena é Professora da UFT e pós-doutoranda em Sociossemiótica. Gentilmente colabora com o Araguaína Notícias.
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