Raylinn Barros da Silva*
O início da década de 1960 traz uma particularidade política nas sociedades do ocidente. As principais democracias do mundo na época como Estados Unidos, Inglaterra e Itália deram uma guinada em direção à esquerda. No Brasil não foi diferente. O governo de Jânio Quadros que sucedera Juscelino Kubitschek estava mergulhado numa crise o que viria a resultar na renúncia de Jânio em agosto de 1961. Assumiu então a presidência o trabalhista João Goulart, popularmente conhecido como Jango. Ele já era uma figura bastante conhecida, havia ocupado o cargo de ministro do trabalho de Getúlio Vargas e eleito vice-presidente na chapa de JK e note-se: com mais votos do que o próprio Juscelino.
A renúncia de Jânio Quadros criou uma grave situação de instabilidade política no Brasil no período. No momento da renúncia, Jango estava em viagem oficial à China e iniciou-se então, um forte debate sobre quem deveria assumir a presidência do país. Altos ministros militares se opuseram à sua posse, pois viam nele uma ameaça ao país devido a sua proximidade com o PCB (Partido Comunista Brasileiro) e o PSB (Partido Socialista Brasileiro). Como o alto comando militar “bateu o pé” contra Jango, o Congresso buscou uma saída constitucional para o problema: a adoção do parlamentarismo no Brasil.
Jango então tomou posse como presidente da república, mas com poderes limitados, teria que dividir suas decisões com o primeiro ministro, outra figura política conhecida: Tancredo Neves. Tancredo ocupou o cargo por quase um ano quando se afastou para concorrer às eleições de 1962. No ano seguinte, como resultado de uma eficiente campanha eleitoral pró-regime presidencialista, em plebiscito, a população rejeitou o parlamentarismo e aprovou a volta ao regime presidencialista. Assim, Jango voltou à cena como o detentor do poder para implantar o seu maior projeto para o Brasil: as reformas de base.
Alguns historiadores acreditam que as reformas de base e a crise econômica entre outras coisas, mas principalmente essas duas, se transformaram no grande “calcanhar de Aquiles” de Jango. O chamado Plano Trienal de Jango visava a implantação de uma série de profundas reformas institucionais que abririam espaço para a solução de problemas estruturais que o Brasil tinha na época. O projeto consistia nas reformas: bancária, fiscal, urbana, eleitoral, agrária e educacional. Na verdade, no plano geral, essas reformas consistiam na implantação de medidas econômicas e sociais de fundo nacionalista que previa uma maior intervenção do estado na vida social, política e econômica do país.
As reformas ainda previam a nacionalização de vários setores industriais do país. O Congresso Nacional via com desconfiança as reformas de Jango e a falta de apoio do legislativo dificultou os planos reformadores do presidente. Junto com o Congresso, crescia a insatisfação de setores das forças armadas com relação a Jango. Outra figura oposicionista, o jornalista Carlos Lacerda, conhecido como o “infernizador” de políticos e principal “algoz” de Getúlio Vargas e JK, se mostrava como o grande articulador anti-Jango. Nesse ambiente, em Março de 1964 o então chefe do estado maior das forças armadas, general Humberto de Alencar Castelo Branco fez circular um documento reservado aos oficiais do exército alertando sobre o “perigo” das reformas de Jango. Nesse documento, os militares evocavam um “inimigo” que assustava: o comunismo. Lembremos que o mundo na época estava dividido entre capitalismo e comunismo, era a Guerra Fria.
Para além do medo do comunismo, para o brasileiro, no campo econômico, 1964 começou com menos dinheiro no bolso e preços em disparada. “Foi mais um susto para a classe média, já suficientemente apavorada com o fantasma do comunismo”, apontou o historiador Jorge Luiz Ferreira. Assim, desgastado com a crise econômica que o país passava e com a oposição do Congresso e dos militares, Jango buscou o apoio popular para a realização das suas reformas.
O presidente começou a participar de comícios populares para a exposição dos seus projetos de reforma. O maior de todos os comícios e que teve mais repercussão ocorreu em 13 de março de 1964 quando na Central do Brasil, Jango reuniu mais de 150 mil pessoas, além de sindicatos, associações de servidores públicos e estudantes. Vendo relativo apoio e simpatia popular às suas reformas, Jango começou a pregar a necessidade de uma ampla reforma constitucional.
Na verdade, a partir daí, setores mais conservadores da sociedade começaram a desconfiar das propostas reformadoras de Jango. Essas propostas de reforma implantaram o medo em alguns setores da sociedade civil organizada e pouco a pouco esse medo tomou conta da população. Um exemplo claro desse ambiente aconteceu seis dias após o comício da Central do Brasil, quando da realização da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” pelas ruas de São Paulo, quando o objetivo era mobilizar a sociedade contra o governo de Jango, aquele que, os manifestantes acreditavam, estava levando o país como diz o historiador Boris Fausto da “república sindical ao totalitarismo comunista”.
Assim, nesse clima de tensão social e medo, os ativistas anti-Jango encontraram respaldo para a derrubada do presidente. No campo externo, é indiscutível o apoio do governo americano na derrubada de João Goulart e na implantação da Ditadura Militar no Brasil. A “desculpa” americana era a necessidade real de se afastar a possibilidade da transformação do Brasil numa “imensa Cuba” na América do Sul. Já no plano interno a instituição que mais respaldou o golpe foi a Igreja Católica. Entre outros medos, o do comunismo também assustava a hierarquia católica no Brasil.
Sabemos que pela sua própria natureza histórica, o catolicismo é conservador. O ambiente de reformas e a incerteza de onde as mesmas poderiam levar a sociedade brasileira fez a Igreja Católica se colocar contra o projeto reformador de Jango. O momento de instabilidade política de 1964 exigiu que “providências” enérgicas fossem tomadas, e a Igreja não teve como não se posicionar: boa parte do clero brasileiro e dos católicos realmente apoiou os militares para a tomada de poder. Porém, logo depois, setores desse mesmo clero passaram a denunciar e combater os abusos e as imposturas do regime que se seguiu.
A Igreja passou então a ser considerada uma “pedra no sapato” do regime, especialmente porque cobrava dos militares o cumprimento da promessa que fizeram antes do golpe: realizar eleições gerais dentro de seis meses – o que não aconteceu. Figuras destacadas do episcopado brasileiro se engajaram contra o regime militar, de forma mais aberta: Dom Paulo Evaristo Arns em São Paulo e Dom Hélder Câmara no Recife e de forma relativamente discreta: Dom Eugênio Sales no Rio de Janeiro.
Dessa forma, em 31 de março de 1964, com apoio de setores mais conservadores da sociedade, de instituições como a Igreja e os oposicionistas do Congresso, o general Olímpio Mourão Filho iniciou a movimentação das tropas na cidade mineira de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro. Este é considerado por muitos historiadores como o início da “Revolução” como ficou conhecido o movimento militar que depôs do cargo o presidente João Goulart. No dia seguinte, 1º de abril, Jango retornou a Brasília e de lá para o Rio Grande do Sul, não houve resistência. O Golpe estava consumado.
Como esclarece o historiador norte-americano Thomas Skidmore “virtualmente não houve luta, apesar de apelos à resistência do ministro da Justiça, Abelardo Jurema, no Rio, e do chefe do Gabinete Civil da Presidência, Darcy Ribeiro, em Brasília. A convocação de uma greve geral pelos líderes da CGT igualmente ficou sem resposta”. Nesse contexto, alguns dos aliados políticos de Jango como seu cunhado Leonel Brizola ainda tentaram a articulação de um movimento de resistência ao golpe que foi imediatamente refugado por Jango que alegava a possibilidade de um “derramamento de sangue” e até mesmo uma guerra civil tida por ele como desnecessária. Logo depois Jango se exilou no Uruguai e depois na Argentina onde terminou falecendo em 1976.
Em 2 de abril, o Congresso Nacional declarou a vacância no cargo de presidente do país. Estava aberto o caminho para a Ditadura Militar que duraria até o ano de 1985. Nascia assim, um dos períodos mais sombrios e terríveis da história do nosso país. Uma Ditadura Militar que mergulhou a sociedade brasileira nos porões da censura, da tortura, perseguições políticas e ideológicas, exílios e mortes inexplicáveis. Sistematizando a "Doutrina de Segurança Nacional", que justificava ações militares como forma de proteger o "interesse da segurança nacional" em tempos de crise, a sociedade brasileira teria que viver com 21 anos de mordaça e sofrimentos.
Nesses 21 anos que se seguiram ao golpe de 1964, milhares de pessoas foram perseguidas, exiladas, cassadas, silenciadas ou mortas. Professores e intelectuais que se opuseram à nova realidade de então pagaram um alto preço por suas convicções e seu engajamento político e social. Artistas e representantes da música brasileira viveram anos de censura à sua produção cultural.
Interessante observar que as visões dos protagonistas do momento, os militares, viam o processo como revolucionário. Ou seja, os militares acreditavam que estavam “salvando” a democracia brasileira dos perigos do comunismo e do sindicalismo exacerbado. Os militares ao reconhecerem o governo Jango como um perigo real de avanço do comunismo no Brasil, viram no movimento militar que começou no dia 31 de março de 1964 uma revolução política com um único objetivo: salvar o Brasil do comunismo e garantir a democracia plena.
Mas a democracia plena não foi à prática dos militares. Pelo contrário, usaram e abusaram de mecanismos antidemocráticos para colocarem em prática suas políticas de manutenção do poder como o uso e abuso dos terríveis Atos Institucionais, os famosos AI´s. A Ditadura duraria até 1985, com a eleição pelo colégio eleitoral do político mineiro Tancredo Neves e a posse de seu vice José Sarney como primeiro presidente civil após os 21 anos de regime de opressão.
Para o outro lado, ou seja, alguns setores da sociedade civil, partidos políticos que estavam na clandestinidade, associações de estudantes e intelectuais, estava em curso um golpe e não uma revolução. Havia a clara dimensão do regime que estava sendo implantado no país e logo se percebeu que a solução dada pelos militares para a crise e a instabilidade do governo Jango passaria por “anos de chumbo” em que toda a sociedade padeceria de um regime autoritário e antidemocrático.
Mas uma questão nos inquieta quando recuamos no tempo e buscamos entender o Brasil de 1964 e naturalmente nos vêm uma reflexão: se as intenções dos militares fossem realmente válidas havia ainda assim a necessidade do golpe militar? No contexto de instabilidade política e social que se seguia no Brasil na época não haveria outra solução pacífica e conciliadora que não passasse pela suspensão do regime democrático e pelo fim das liberdades em todos os níveis como realmente e infelizmente aconteceu?
Talvez as repostas para essas inquietações passem pela reflexão da necessidade das instituições políticas e sociais como o Congresso Nacional e a Igreja Católica respectivamente na época não terem se colocado como pontos de equilíbrio social numa sociedade que na época estava em processo de crise. Bastou ambas instituições se colocarem abertamente de um lado para que esse lado fosse vencedor e obtivesse vantagem, no caso, os militares.
Vale ressaltar que o movimento militar de 1964 para além da questão de ser visto como golpe ou como revolução, ele foi feito, patrocinado e efetivado sem a participação popular. Não houve consulta direta ao povo. O povo brasileiro não foi chamado para decidir sobre a solução para a crise política e social que se abatera sobre o país na época. A sociedade não foi consultada. Mudou-se uma realidade política e social sem consulta popular.
Alguns setores da sociedade civil não poderiam ter decidido por toda uma população. Foi, portanto, novamente, uma mudança feita pela elite de um setor da sociedade brasileira, naquele caso, os militares. Como reflete o historiador Sérgio Buarque de Holanda “Até agora, todas as revoluções dentro da História do Brasil foram de elites, civis ou militares, mas sempre elites”. Portanto, foi uma revolução de elite, assim como ocorreu no processo que culminou com a independência em 1822 e com a proclamação da república em 1889.
Mas quais lições a História nos reserva sobre o movimento de 1964? O que podemos aprender com os erros do passado recente do Brasil? Essas questões constituem uma das preocupações que devemos ter como cidadãos. Julgo que o movimento de 1964 que me posiciono em acreditar como golpe e não como revolução, deve nos servir como instrumento de reflexão diária para aprendermos com os erros do passado. Foi absolutamente um erro considerar que a supressão dos direitos humanos básicos como liberdade política, de expressão, de pensamento, de manifestação, de associação, deve servir como atalho para se conseguir determinados objetivos.
Os militares acreditaram que estavam promovendo uma revolução ao aplicarem um golpe para afastar o que eles consideravam um perigo para a democracia na época. Eles caíram naquela máxima equivocada atribuída à Maquiavel que “os fins justificariam os meios”. Nenhum fim pode justificar um meio. A supressão das liberdades democráticas em todas as suas dimensões não pode servir de experiência para se alcançar determinados resultados.
A recente criação da chamada “Comissão da Verdade” pode nos servir de reflexão para que a verdade não seja suprimida da nossa memória política. Considero que essa comissão tem uma responsabilidade imensa com a memória e consequentemente com a História do Brasil dos anos da Ditadura Militar. Não defendo a politização desta comissão ou a sua transformação em tribunal penal para os opressores do regime. Mesmo porque a Lei da Anistia promulgada em 1979 já colocou “uma pedra” sobre esse tema. Mas defendo o uso desta comissão como instrumento de reflexão sobre o nosso passado recente no sentido de ser exposta toda a verdade sobre o regime até para o resgate e a valorização da nossa memória histórica.
Caminhando para o encerramento desta reflexão, gostaria de pensar sobre o nosso país 50 anos após do golpe militar de 1964. Interessante observar que a necessidade das reformas de Jango que assustou e tanto incomodou os setores mais conservadores da sociedade na época e que abriu caminho para o golpe ainda se mostra atual. Há quantas décadas os especialistas defendem a necessidade de reformas estruturais em nosso país como a reforma tributária, política, educacional, agrária, jurídica. Ainda hoje há um enorme consenso sobre a importância e a necessidade urgente de tais reformas.
Considero que João Goulart foi um dos pioneiros em perceber que o desentrave para o desenvolvimento do Brasil passaria por essas reformas. Sim, ainda na década de 1960 ele percebeu que o Brasil precisava ser repensado a partir de uma ampla reforma estrutural. Pena que ele “pagou” por suas coerentes ideias. Ele estava à frente do seu tempo. O Brasil caminhou em direção a Jango. Ele não precisou sair do lugar. Como professor de História, julgo que foi no Brasil de Jango que realmente se rabiscou um projeto, uma agenda positiva de reformas. O Brasil de Jango tinha uma agenda de reformas. Surpreendentemente o Brasil da década de 1960 até hoje ainda busca a sua agenda.
Finalmente, nessa data de 31 de março e 1º de abril de 2014, quando lembramos o cinquentenário do golpe de 1964 que mergulhou o Brasil em 21 anos de Ditadura Militar, para além de lembrarmos como uma data de triste lembrança ou melancólica, que ela nos sirva para refletirmos profundamente sobre a importância da nossa democracia. Sobre a importância de valorizarmos a democracia em todos os níveis em nossa sociedade. Para que nunca mais ela seja ameaçada com a justificativa falsa de que ela sairá fortalecida ou protegida. Recordo-me das palavras do ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso quando disse certa vez que “Hoje a liberdade e a democracia são como o oxigênio – você pensa que não tem importância porque existe em abundância”. Demos todos nós, portanto, mais importância à democracia – essa invenção dos gregos aperfeiçoada pelas sociedades modernas – assim como damos importância ao ar que respiramos.
Perfil
É Licenciado em História e Especialista em Ensino de História pela Universidade Federal do Tocantins. Professor efetivo da rede estadual de ensino do Tocantins lecionando História, Filosofia e Sociologia no Ensino Médio. Tem artigos científicos e resenhas publicadas em periódicos e revistas na área da História. É autor do livro “Pedro Milagroso: o mendigo que virou santo”.