Luiza Helena Oliveira da Silva*
A Internet é um espaço aberto, plural. Pode servir e bem à democracia, tão ameaçada pelos conservadores que querem a ordem a todo preço, uma ordem que lhes serve, contra o interesse do resto, é claro. Mas serve também a tudo o mais, como qualquer veículo midiático. Serve às vozes que não se calam, que insistem, ainda que enviesadas, na defesa do horror, do preconceito, da violência, da ditadura. E persistem de toda forma, encontrando lugar favorável como erva daninha onde poderiam vicejar tantas flores.
Recebo pelo Facebook uma mensagem, compartilhada por uma amiga professora. O texto traz a imagem de uma jovem mulher, segurando um cartaz, onde se lê a palavra “estrupada”, grafia incorreta segundo reza a ortografia oficial. E logo abaixo, outra jovem, a nudez anunciada, com outro cartaz, idêntico equívoco gramatical. Passamos, então, a uma discussão, em que provoco os que ironizam e desqualificam os cartazes com escrita não convencional. Não há motivo de riso. Pesquisa recente do IPEA mostrou o quadro grave relacionado à violência contra a mulher. Inicialmente, os dados falavam que 65% dos entrevistados concordavam com a afirmação de que mulheres usando roupas pretensamente provocativas mereciam ser estupradas. Tratava-se, na verdade, de um equívoco na apresentação dos gráficos, o que resultou na divulgação de uma errata e no pedido de exoneração pelo diretor do Departamento de Estudos e Políticas Sociais, Rafael Osório. Segundo os novos dados, a porcentagem seria menor, 26%, o que não deixa de ser alarmante, considerando-se que remete a mais de ¼ dos pesquisados, número bastante grave para justificar as inúmeras manifestações que se sucederam por todo o país.
Os que se apressam a desqualificar os cartazes não parecem perceber o que está em questão. Não temos uma pesquisa IPEA para saber quantos brasileiros dizem “estrupo” no lugar de “estupro”, mas são certamente numerosos, talvez a maioria. Os sociolinguistas talvez tenham dados mais precisos e poderiam vir ao meu socorro. Trata-se de um fenômeno que os linguistas que se ocupam das mudanças linguísticas denominam “metátese”, isto é, um fonema muda de lugar no interior da palavra. Isso aconteceu inúmeras vezes desde o latim até o português contemporâneo e, como se vê, é um fenômeno que se mantém produtivo, evidenciando que a língua se movimenta, enquanto viva. Talvez, um dia, esteja dicionarizado, por força do uso volumoso e então ninguém se assuste ou ria mais de quem escreve como tanta gente fala pelo Brasil afora.
Por mais que tenha insistido em desmontar o raciocínio apressado, que condena os usos populares (enquanto os absurdos quanto ao conteúdo dos discursos permanece sem causar idêntico furor), a discussão se manteve no plano do linguístico e do gramatical, não chegando ao ponto crucial: o que remetia ao plano da violência simbólica, mais sutil certamente que os estupros de que são vítimas mulheres brasileiras, mas também grave, porque desqualifica, separa, quer calar. A postagem que deveria causar humor, era, enfim, um outro modo de desqualificar as que assumem na Internet uma forma de luta e denúncia e isso não parecia ser percebido por aqueles que ironizavam as imagens.
A questão é que não se pode rir das mulheres que denunciam a violência, seja qual for a língua ou a variedade de que façam uso. Não se pode rir da agressão, da dominação, do cerceamento, da manutenção de uma lógica patriarcal. Como não se pode rir da ditadura, porque ela, como alguém já escreveu um dia, “é triste”.
Numa das minhas últimas aulas de análise do discurso, ouvi um dos nossos bonitos e inteligentes alunos dizendo que é melhor matar uma mulher do que bater nela. E citou para isso a Lei Maria da Penha, discutindo a punição que o agressor sofreria nos dois casos, a valer a pena a morte, em vez da agressão física. Por mais que tenha insistido com o rapaz, ele não conseguia avaliar a gravidade do que dizia. Não fazia sentido pra ele que estivesse indignada, como não parecia a muitas alunas presentes que me exasperasse, como quem ouve algo impensável e, portanto, impronunciável. Mas ali estava materializado em enunciado torto e absurdo o pensamento de tantos jovens brasileiros, homens e mulheres, que a pesquisa do IPEA trouxe à luz.
Uma amiga professora, coordenadora de um curso de graduação em Letras por muitos anos, insistia que deveríamos “preparar os alunos para a vida”. Quando ouço ou leio coisas como as expostas acima, me entristeço, por ver que a formação universitária não parece abalar o que deveria ser destruído, como é o caso do preconceito, que alimenta e gera todas as formas de violência. As terias todas que compartilhamos não abalam o edifício que deveria fazer ruir. Os alunos leem mas não veem os sentidos graves que os enunciados encerram, nem analisam a historicidade desses sentidos que se arraigam. Falta-lhes o que Lynn Mário designa como letramento crítico: a leitura é sempre social e é necessário que o leitor estranhe sua leitura, que compreenda porque lê só um viés, o da obviedade gramatical, não o discurso que o texto materializa. É possível que não haja tanta razão de riso, afinal.
Nos preciosos textos de Eric Landowski que leio com prazer, encontra-se a afirmação de que a semiótica deve envolver-se com o sentido da vida. Está isso expresso no livro de Greimas que funda a teoria (Semântica Estrutural), a dar o norte para os estudos que deveriam se seguir. É o compromisso primeiro da teoria que estudo amorosamente há anos. Como professora, eu queria que meus alunos também se ocupassem do sentido da vida, mais do que do sentido dos textos ou o que se identifica na sua superfície e imediaticidade. Porque a vida faz sentido e para que faça sentido, não pode haver lugar para o medo, a morte, o preconceito, a violência ou a mentira.
* Professora da UFT e pós-doutoranda em sociossemiótica.