Cerca de 80 famílias camponesas atingidas pelo Projeto Agrícola Campos Lindos, no município de Campos Lindos, nordeste do Tocantins, correm risco iminente de despejo de suas terras pelo cumprimento de mandado de reintegração de posse em favor da Associação de Plantadores do Alto do Tocantins (Associação Planalto), representante de produtores de soja. A Polícia Militar já fez o reconhecimento de campo e apenas aguarda o efetivo necessário para realizar a ação. O Recurso de Apelação apresentado pelas famílias foi julgado em 29 de janeiro de 2014; por maioria, a 5ª Turma da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Tocantins negou provimento.
Na ação, a Associação Planalto alega que as famílias invadiram a área de reserva em condomínio do projeto, o que estaria prejudicando sua regularização ambiental. No entanto, o que aconteceu foi o inverso: as famílias, que já ocupavam a área há décadas, foram desalojadas quando o projeto se instalou em 1997 e acabaram confinadas em sua área de reserva.
Para sanar as dúvidas quanto ao tempo de permanência das famílias em suas posses, o Ministério Público Federal realizou laudo antropológico, concluído no último dia 28 de janeiro. Segundo o documento, “algum tempo após o início da implantação do Projeto Agrícola Campos Lindos, uma intensa mobilização das comunidades forçou o governo do Tocantins a reconhecer a existência destas pessoas e o fato delas estarem na região desde muito antes da chegada dos produtores de soja. É neste contexto que foi proposta a titulação de suas terras, por intermédio do Instituto de Terras do Tocantins (Itertins). A considerar o que observamos durante nossa estada na região, tal trabalho não foi efetivado de forma adequada: há uma quantidade razoável de famílias que foram ignoradas pelo cadastramento, em virtude da utilização de critérios questionáveis como considerar que pais e filhos que possuíam casas próximas uma da outra constituíam um único núcleo familiar e precisariam de uma única área para obter seu sustento”.
Conflitos e problemas ambientais
O Projeto Agrícola Campos Lindos foi criado em maio de 1997 por José Wilson Siqueira Campos, então governador do Tocantins, por meio do decreto 438/97. Em uma reforma agrária “às avessas” que consumou uma grilagem pública de terras, o estado desapropriou por improdutividade a antiga fazenda Santa Catarina – já titulada de forma controversa –, e distribuiu os mais de 90 mil hectares a fazendeiros, empresários e políticos, muitos deles bem conhecidos: a senadora Kátia Abreu e o ex-ministro da Agricultura de Itamar Franco, Dejandir Dalpasquale, estão entre os beneficiários que pagaram apenas 10 reais por hectare.
A implantação do projeto desconsiderou a existência de cerca de 160 famílias camponesas que, de forma comunitária, ocupavam o local havia mais de quatro décadas com produção diversificada, criando o gado solto e aproveitando o que o Cerrado oferecia. Suas áreas acabaram convertidas em reserva legal do projeto. Depois de muita pressão, aproximadamente 70 delas tiveram seus títulos concedidos, mas boa parte ainda ficou sem reconhecimento legal de suas posses. Apesar disso, continuaram na área reivindicando uma solução. Diariamente, convivem com a contaminação provocada pelo uso intensivo de agrotóxicos nas lavouras de soja.
Além dos conflitos relacionados à posse da terra, o projeto apresenta diversos problemas ambientais. Ele começou a funcionar sem apresentar o EIA/Rima e sem Licença Prévia do Naturatins (órgão estadual de licenciamento ambiental). Em 2000, o Ibama constatou diversas irregularidades, como desmatamento de grandes áreas sem autorização, inclusive de áreas de preservação permanente (APPs) na beira dos cursos d’água. O Ministério Público Federal entrou com ação civil pública contra o projeto, e Naturatins e Ibama impuseram condicionantes para o seu funcionamento. Em 2009, o Naturatins fez nova inspeção e confirmou a sobreposição de áreas de reserva legal com APPs. O imbróglio se arrasta sem solução e, ainda assim, o projeto nunca teve suas atividades embargadas.
Em fevereiro de 2013, em audiência pública realizada em Campos Lindos sobre a situação das famílias de posseiros e sobre os problemas ambientais, o Naturatins reconheceu que o projeto continua a funcionar sem licenciamento. A Defensoria Pública do Tocantins afirmou seu compromisso em atuar junto aos posseiros, que considera vítimas da expropriação encabeçada pelo estado. Nesta ocasião, o Ministério Público Federal designou um antropólogo para produzir um laudo a respeito das comunidades.
Trabalho escravo
Foi em uma fazenda do projeto que se deu o primeiro resgate de trabalho escravo do estado do Tocantins. Entre 2003 e 2013, foram identificados oito casos em Campos Lindos, seis deles em atividades ligadas à soja. Apenas três foram fiscalizados, com o resgate de 29 trabalhadores. O município de Campos Lindos é o maior produtor de soja do Tocantins e possui o segundo pior IDH do estado. A situação vivenciada pelas famílias impactadas pela soja torna seus filhos extremamente vulneráveis ao trabalho escravo.