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A ansiedade e sua relação com o perigo

Vivemos em uma sociedade extremamente ansiogênica

A pergunta como lidar com a ansiedade bateu recorde de interesse na última década.
Foto: Ilustrativa

Vivemos em uma sociedade extremamente ansiogênica. Esta constatação foi feita, dentre outros, pelo filósofo e sociólogo francês Gilles Lipovetsky no início do século XXI e pode ser lida em seu texto Pós-modernidade e hipermodernidade, que consta do livro A invenção do futuro, organizado pelo psicanalista e psiquiatra brasileiro Jorge Forbes, e publicado em 2005. Acredito que essa afirmação seja ainda mais válida hoje, em 2021, em meio ao cenário da pandemia do Covid-19. De fato, como mostrou uma matéria publicada em setembro de 2020, pelo jornal Estadão, que analisa dados inéditos fornecidos pelo Google, a busca neste site tendo como expressão-chave a pergunta como lidar com a ansiedade bateu recorde de interesse na última década e representou um aumento de 33% em relação a 2019. Isso pode indicar que a sociedade brasileira é, também, extremamente ansiogênica.

O que é ansiedade?

Ansiedade é um termo utilizado na área da psiquiatria por ser considerado mais objetivo e preciso que o de angústia, seu antecessor e equivalente no campo da Psicanálise, porém pouco conhecido e utilizado pelo público não especializado. Neste artigo farei dois comentários que considero essenciais para compreendermos a ansiedade em suas manifestações nos âmbitos do sujeito e da sociedade. No núcleo da ansiedade está a expectativa de perigo, já afirmava Freud, em 1920, em seu famoso texto Além do princípio de prazer, ou seja, na ansiedade a pessoa é tomada por uma sensação de perigo e busca se preparar, embora não saiba exatamente para o quê.

Há, portanto, na ansiedade, uma indeterminação, uma vaguidão quanto ao objeto que constitui perigo, diferentemente do medo, quando é possível dizer com precisão o que representa o perigo, como, por exemplo, uma cobra cascavel. Do que você tem medo? De uma cobra cascavel, bem se pode responder. Você tem ansiedade de quê? Neste caso já não é possível ser tão assertivo quanto no exemplo anterior.

Em seu texto Inibição, sintoma e angústia, Freud nos ajuda a entender que o perigo, na ansiedade, pode se originar no próprio sujeito como também fora dele, ou seja, a fonte do perigo pode ser uma parte do aparelho psíquico da própria pessoa em estado de ansiedade ou, ainda, se localizar no contexto da realidade factual na qual o sujeito está inserido. Às vezes a pessoa fica ansiosa porque teme que algo de ruim possa lhe acontecer em relação ao emprego, à saúde – sua ou de alguém querido – ao amor, às amizades etc. Porém, tudo pode estar indo muito bem, mas mesmo assim se sentir em estado de perigo constante, situação em que a ameaça talvez se relacione à realização de algum desejo seu inconsciente e proibido, ou seja, a fonte do perigo se localiza em sua existência singular ou seja, em si mesmo.

Sociedade extremamente ansiogênica: por quê?

Essas considerações nos ajudam a compreender porque a sociedade atual se encontra em uma configuração extremamente ansiogência. Como explica Jorge Forbes, a humanidade vive uma transformação tsunâmica, a maior em 2.500 anos, o que implica dizer que os grandes referenciais que orientavam a existência humana estão desaparecendo, se transformando ou dando lugar outros novos, o que deixa a todos em estado de desorientação e, consequentemente, de perigo difuso. Zigmunt Bauman, em seu livro Modernidade Líquida, explica que a Modernidade significou, com o fim da Idade Média, o derretimento de determinados sólidos, ou seja, orientadores da sociedade da época, tais como os costumes, a tradição, o misticismo e a crença em Deus como o cuidador supremo.

Porém, outros sólidos foram estabelecidos, como a figura do Estado-Nação, a Razão, a Ciência e a ideia de que a sociedade progride rumo a um estado de perfeição. No entanto, no momento de transição em que vivemos, chamado de modernidade líquida, pós-modernidade, hipermodernidade ou TerraDois, como prefere Jorge Forbes, os sólidos existentes, ou os eixos de referência para a vida humana em sociedade, estão se derretendo e outros consistes não estão sendo colocados no lugar.

Em resultado disso, as pessoas não sabem muito bem como se orientar nessa sociedade líquida, flexível, multicentro, multirreferencial, sem padrões fixos e universais. Jorge Forbes, já em 2012, afirmava que neste contexto de globalização, não “se nasce, se educa, se ama, se casa, se constitui família, se trabalha e se morre como antes” (FORBES, 2012, p. X). O sentimento de estar à deriva, como indivíduo, como família, e como sociedade se impõe, para a grande maioria das pessoas, com muito mais intensidade neste contexto de pandemia. Como escreveu Joel Birman (2020, p. 14):

A pandemia em curso representa o maior acontecimento sanitário ocorrido no mundo desde a gripe espanhola de 1918 e apresenta efeitos ainda mais catastróficos que a pandemia do HIV/Aids dos anos 1980. Assim, colocou em suspensão todas as atividades sociais e econômicas na totalidade dos países, transformou de forma radical formas de vida e de sociabilidade, que remetem seja para relações singulares do sujeito com o seu corpo, seja para as relações plurais do sujeito com o Outro em diversos contextos, assim como nas suas mais diferenciadas formas de existência, nos registros real e simbólico.

Não é nenhuma surpresa, portanto, que tanta gente tenha recorrido ao Google em busca de saber como lidar com a ansiedade, posto que o cenário de desolação do mundo contemporâneo pandêmico tem o poder de despertar em todos um estado de perigo iminente e permanente. Ninguém sabe ao certo quando a pandemia vai passar e que mundo será o da pós-pandemia. O destino de cada um se coloca, então, como uma incógnita. Do meu ponto de vista, algo que todos nós podemos fazer, desde já, é investir nas soluções criativas – seja por meio da palavra, da arte, do trabalho, da educação etc, o que possibilita sair do registro da ansiedade paralisante para o da ansiedade criativa. É ilusório buscar soluções prontas para este novo mundo que não é igual a nenhum outro. Necessário, portanto, apostar na invenção pessoal, familiar, das sociedades e de mundos.

Sugiro que pais, educadores e todos aqueles que trabalham com jovens e crianças tenham a coragem de eles mesmos buscarem nomear os perigos que lhes rondam para, a partir daí, ajudar as novas gerações a desenvolver essa habilidade. Quando algo não tem um nome, é necessária a ousadia para inventar, e quando a gente nomeia consequentemente passa a saber com o que está lindando, ainda que seja com algo tão temeroso como uma serpente, uma cobra cascavel. Passa-se, assim, do registro da ansiedade para o do medo, o que, de alguma maneira, traz certa medida de calmaria. Seja por meio da análise com um psicanalista, seja pela arte, pelo trabalho, pelas conversas com amigos, nas igrejas, nas famílias, ou por outros meios, que cada um possa fazer de sua ansiedade um motor para uma vida criativa. 

Autor

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*Dr. Francisco Neto Pereira Pinto 

  Psicanalista, escritor, membro da Acalanto, e professor no PPGDire/UFNT e no Unitpac. E-mail: fneto@uft.edu.br