Colunas

Crítica à divisão social do trabalho no ambiente doméstico

Dos dilemas acentuados na pandemia, o de ser mulher e não saber cozinhar

Dos dilemas acentuados na pandemia, o de ser mulher e não saber cozinhar
Foto: Ilustração

Sou mulher, mãe e esposa. Tenho 34 anos, mas não sei cozinhar! Embora tenha desenvolvido outras habilidades relacionadas aos afazeres domésticos e à vida profissional fora do lar, a falta de afinidade com a arte da culinária parece que me torna menos mulher aos olhos da sociedade.

Quando criança, as brincadeiras de fazer “comidinhas” nunca me afeiçoaram. Preferia as de aventura e que envolvessem situações de oratória como brincar de escola, de vendas, com jogos de tabuleiro... de cozinhar, não.  Na divisão das tarefas em casa, na adolescência, sempre me ofereci para a limpeza, lavar a louça, tentando evitar o contato com o preparo dos alimentos.

Quando minha mãe me indagava como eu viveria quando casasse ou tivesse minha própria casa, eu costumava dizer que iria estudar e trabalhar bastante para poder remunerar uma cozinheira de forma justa. Ela ria, todos riam, e dizia que o certo é não casar se não quiser cozinhar, porque marido gosta da comida da esposa. De pronto eu respondia que sendo assim, jamais me casaria. E não é que casei antes de aprender a preparar cardápios variados?

Por não ser “boa na cozinha”, uma mulher de “forno e fogão”, quando comuniquei à minha família que iria me casar, a primeira reação de todos foi a de enfatizar que meu noivo era no mínimo corajoso, para não dizer maluco. Como se casar com uma mulher que não sabe cortar um frango, preparar um bolo, ou passar um café? Desde então, nas reuniões de família, na divisão dos pratos a serem exclusivamente elaborados pelas mulheres, sempre sou motivo de piadas entre homens e mulheres por não ter a “mão boa”.

Sobre a desigual divisão sexual do trabalho, Sousa e Guedes (2016) pontuam as raízes históricas dessa disparidade:

A história do século XIX revela que havia, na sociedade de modo geral, uma nítida divisão entre domínio público e privado. Os homens "pertenciam" à esfera pública, pois desempenhavam de forma predominante o papel de provedor da família, e as mulheres "pertenciam" à esfera privada, uma vez que o cuidado do lar funcionava como atividade de contrapartida dado o sustento financeiro do marido. Nessa dicotomia entre o público e o privado se consubstanciou a divisão sexual do trabalho, homens provedores e mulheres cuidadoras. Assim, durante um período considerável de tempo, as atribuições sociais, ao mesmo tempo que limitavam as mulheres a permanecerem no espaço privado, delegavam aos homens, como "destino natural", o espaço público. (SOUSA E GUEDES, 2016 sp.)

Estou casada há 12 anos, tenho dois filhos e ainda não aprendi o ofício de “boa cozinheira do lar”. Não é que eu não saiba preparar um arroz com feijão e bife, é que não tenho empatia por livros de receita e tutoriais sobre como preparar um fricassê. Nas minhas horas vagas, adoro ler, escrever, assistir filmes, e organizar minha casa enquanto espero meu companheiro preparar um lanche ou comprar algo pronto na rua para o jantar, às vezes também para o almoço.

Pode parecer egoísmo, ou até mesmo rebeldia, ouvir isso de uma mulher que é responsável por uma família composta em sua maioria por homens. Isso porque em sua história de predominância patriarcal, na divisão social do trabalho, a mulher foi relegada ao cuidado da casa e dos filhos.

Quando passamos a assumir outros espaços da esfera produtiva, essa divisão não foi reorganizada. Embora tenhamos conquistado alguns direitos como o de estudar, ter emprego remunerado, participar do debate político, contribuir com a subsistência da família por igual, e em muitos casos exclusivamente, em sua grande maioria, os homens não passaram a dividir as tarefas de casa com as mulheres.

 Como pontuado por Sousa e Guedes (2016), ao ocupar novos espaços no mundo do trabalho, as mulheres vêm acumulando funções numa rotina exaustiva, desigual e desumana.

Com as transformações no cenário socioeconômico, com as revoluções culturais e a força do movimento feminista no século XX, novas configurações sociais foram surgindo, fragilizando de modo conjunto a dicotomia entre público e privado e o modelo homem provedor e mulher cuidadora. O relaxamento das fronteiras entre o mundo produtivo (homens) e reprodutivo (mulheres) tem contribuído com a possibilidade de as mulheres participarem do mundo produtivo, mas não reveste o afastamento dos homens do mundo doméstico. Acontece que, através desse fenômeno, o adensamento das mulheres nas fronteiras públicas não é acompanhado de uma revisão dos limites das responsabilidades privadas femininas. Isso significa que a esfera de reprodução da família como educação e demais cuidados continua, em grande medida, a cargo das mulheres. (SOUSA E GUEDES, 2016 sp.)

A jornada tripla que as mulheres travam diariamente entre o trabalho, os estudos e as obrigações do lar, foi sendo internalizada na conjuntura social como algo natural, e entre as tarefas que ainda hoje atribuem como ofício exclusivo do público feminino, a de cozinhar está entre as principais. Esse papel tornou-se ainda mais evidente nos últimos meses, devido ao distanciamento social provocado pela pandemia do novo Coronavírus.

Enquanto a maioria da população, independente de gênero, não pode trabalhar fora de casa, são as mulheres quase em sua totalidade, as responsáveis pela alimentação de toda a família, desde o café até a última refeição do dia. Esse cenário é debatido por Guimarães (2020), ao alertar para a mudança de comportamento que o período de isolamento exige diante da sobrecarga do trabalho feminino.

Neste período de isolamento social imposto pela pandemia do Covid-19, temos sido confrontados com algumas realidades que não eram muito bem-vindas. Uma delas consiste na nossa relação com a manutenção da vida doméstica, que inclui a limpeza de nossa própria casa, o cuidado com as roupas, o abastecimento da geladeira e despensa, a preparação das refeições e o cuidado com as crianças, idosos e enfermos. Muitas famílias brasileiras ainda vivem sob o espectro dos três séculos de colonização e escravidão e relegam o trabalho doméstico às mulheres da casa ou detém o privilégio de terceirizar as atividades descritas acima em troca de remunerações intermitentes ou de salários que não se equivalem aos dos patrões e patroas. (GUIMARÃES, 2020 sp.)

Já vemos alguns exemplos, embora parcos, de famílias com papeis “invertidos”, em que os homens não ajudam, mas assumem por igual as responsabilidades do lar. É quase uma utopia, mas acontece ainda como exceção à regra da divisão social do trabalho proposta por Durkheim no final do século XIX.

Tenho orgulho de estar entre esses exemplos raros, e dividir não apenas as obrigações financeiras, mas as domésticas também. Porém, essa relação estabelecida na não divisão do trabalho por gênero não é reconhecida como direito, mas como privilégio, como se fôssemos menos capazes de manter um lar por não saber e não gostar de cozinhar.

Entre as continuidades históricas, as atribuições domésticas separadas por gênero há muito necessitam de uma ruptura. O cenário provocado pela pandemia com acúmulo de atividades domésticas impõe a urgência de repensarmos a manutenção do lar sob o viés da igualdade na divisão de tarefas. 

Enquanto preparava o almoço de sábado, entre um dedo cortado, algumas pequenas queimaduras, e a frustração de são saber cozinhar, refletia sobre a injustiça dessas relações tão desiguais e que sempre penalizam as mulheres pelo simples fato de serem mulheres.

Não precisamos esperar a pandemia acabar para discutir esse e tantos outros dilemas que tornam nossa rotina ainda mais árdua. Qual o problema de ser mulher e não saber cozinhar? Não se pode saber tudo. Saber cozinhar não deve ser uma prerrogativa para sermos mulheres, até porque ninguém pode reunir todas as habilidades.

Referências

SOUSA, Luana Passos de; GUEDES, Dyeggo Rocha. A desigual divisão sexual do trabalho: um olhar sobre a última década. Disponível em: < https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142016000200123> Acesso em 30 mai 2020.

CANCIAN, Renato. Durkheim - A divisão do trabalho social. Disponível em: Acesso em 30 mai 2020.

GUIMARÃES, Géssica. A sobrecarga do trabalho feminino em tempos de pandemia. Disponível em: acesso em 30 ami 2020.