Crônica de uma manhã de sábado 2
Foto: Ilustrativa

Érica Manuela Buendía Muhoz García era jovem trabalhadora do campo do ensino. Fazia ela uma tese, investigando narrativas de mulheres professoras do Norte. Também tinha afazeres junto a comissão vinculada ao Ministério da Educação, atuava em formação continuada e, nas horas de folga, cuidava de transplantar as mudas de flores e da horta cultivada em pequenos vasos.
 

Moça criada na roça, trabalhando com o pai na venda de produtos em feira-livre, educadora de escolas do campo, principiou desde cedo a acordar com galinhas, que, ao menos nas terras ao Norte, amanhecem aos berros antes da cantoria de passarinhos. Os galos cortam a madrugada, os passarinhos se assanham em sinfonia horas após, mais atentos à claridade do sol, que queima com vontade, deixa morena toda gente e enlouquece alguns.
 

Érica Manuela Buendía Muhoz García também adormece cedo e, em tempos de pandemia e atividades online, às vezes cochila nas lives, às vezes acorda com o computador no colo, horas depois do professor, pesquisador, conferencista, palestrante, liderança política, responder à última pergunta do chat no Youtube. Ou no Meet. Ou no Zoom. Ou em outra plataforma que isso é digressão e não vem ao caso.
 

O caso a reportar é que dorme cedo como moça educada para o trabalho com rotina rígida, prazos curtos, muitas demandas, só interrompida pelos momentos que gasta mudando as plantas de vasos, arrastando-os ora mais para a sombra, ora mais para o sol, ora mais para a chuva, ora socorrendo-as antes que naufraguem nas chuvas do final da temporada das boas tempestades, que salvam alguns de enlouquecer com o sol.
 

Érica Manuela Buendía Muhoz García mora só, em sua residência breve e encastelada. Muros altos, cerca elétrica, nenhum cachorro. Falta-lhe o cão porque tem alergia e o animal não suportaria o exíguo espaço, ainda mais o calor que enlouquece gente, que dirá com um pobre cão, transitando entre poucos cômodos e o quintal, este muito ocupado com as flores e a horta, um carro e um tapetinho.
 

Érica Manuela Buendía Muhoz García, por morar só, tem o hábito de tomar café com as irmãs, que se encontram pelo celular. No mais tardar às sete horas, todas as quatro irmãs de pé, com todas as novidades para compartilhar desde a última conversa da noite anterior, dividem pão, café e passarinhos. No último sábado, porém, as irmãs não conseguiram conexão por Whatsapp, Messenger, chamada telefônica, Skype. Se Érica Manuela Buendía Muhoz García acordava todos os dias bem cedo, algo lhe ocorrera de grave.
 

Usando  Whatsapp, Messenger, chamada telefônica, Skype, reuniram uma pequena multidão para socorrer a irmã, possivelmente sob algum perigo. Aos poucos, estacionaram na calçada da residência de Érica Manuela Buendía Muhoz García as amigas Luiza Maria de Bragança e Silva, Jane Jandira Bastos Muniz e esposo, o amigo Mário Augusto Escobar, o primo Magno Henrique Reyes García, um taxista e um chaveiro, ambos de nomes desconhecidos.
 

No calor da manhã, sob o sol de 1º de maio, então quente e úmido a derreter os miolos do povo aglomerado em seu portão, a vizinha solícita e preocupada, uns com máscara, outros desistindo dela pelo suor, observando a possibilidade de vencer a cerca elétrica, destruir o portão ou apenas o miolo da fechadura, considerando que se via pelo olho mágico o carro de Érica Manuela Buendía Muhoz García estacionado na diminuta garagem na qual há plantas e o tapetinho, com compras do supermercado no teto do veículo, portas e janelas fechados, muitos gritos exaltados, muitas batidas no portão, concluíram que algo grave lhe ocorrera e que precisariam tomar atitude mais drástica do que batidas no portão, gritos, ligações pelo telefone, Whatsapp, Messenger, Skype. Passava já das 10 horas quanto deliberaram pelo arrombamento, numa apressada assembleia, sem votos contrários e abstenções.

 

Como Brigitte Bardot do Norte, cabelos loiros levemente revoltos, camisola rosa, olhos de quem teve um sono bom, mas explicitando falta de compreensão pelo ajuntamento e a tentativa de arrombamento que fez o barulho no portão de ferro acordar o último trabalhador que ressonava no feriado, Érica Manuela Buendía Muhoz García abriria o portão com o controle remoto, justificando que apenas dormia, no quarto dos fundos, o gostoso e pesado sono dado aos trabalhadores no feriado.

 

Como dizem os versos de uma canção, “O amor tem feito coisas que até mesmo Deus duvida”.

Autora

Prof.ª Dr.ª Luiza Helena Oliveira da Silva é Coordenadora do Mestrado Profissional em Letras em Rede Nacional/UFNT (ProfLetras) e coordenadora adjunta do ProfLetras Nacional. Docente do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL/UFNT) e Coordenadora do GESTO - Grupo de Estudos do Sentido - Tocantins.

Luiza Silva