Escritor Francisco Neto Pereira Pinto, autor de À beira do Araguaia.
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Quem desfruta da minha amizade já deve ter ouvido mais de uma vez a história de que senti de fato que esta seria minha terra quando entrei pela primeira vez numa voadeira, em Araguanã, seguindo uma primeira e bem-aventurada viagem pelas águas do Araguaia. Aquela paisagem, aquele rio, aquela manhã ensolarada me revelavam que tinha encontrado lugar de pouso, talvez para sempre. Uso o advérbio que traduz imprecisão porque o destino é intuição, jamais certeza, quando não se goza do saber da leitura das mãos, dos búzios, das estrelas, só de livros.

É do Araguaia que fala Francisco, de um rio que atravessa a vida do pescador Pedro, de sua companheira Ana, de seus filhos Theo e Eve, de seus pais Romão e Sebastiana, de seus gatos Calíope e Dom. O ribombar das cachoeiras está praticamente em todos os contos. Estão lá os peixes, as comidas, os sons do rio e dos pássaros. Estão lá as casas da gente simples, seu mobiliário precário, o telhado de folhas de babaçu, como também lá as paixões que movem a gente de todo lugar, de todos os tempos.

Francisco é paraense. De que cidade? Já me contou, mas não me lembro, não sei mais. Sei que traz certamente muito da memória da infância paraense e que disso se vale para contar as impressões do pequeno Pedro ao lado da mãe na embarcação, no conto que abre a coletânea. Penso que também traga da escuta de tantos sujeitos elementos para compor o texto que alude à violência contra camponeses por conta da ação militar que, no início dos anos 70, considerou moradores da região como aliados de comunistas.

A partir de 1972, militantes do PCdoB e camponeses e indígenas da região foram indistintamente tratados como terroristas. A crueldade relatada pelo conto alude à estratégia militar de controlar qualquer resquício de resistência a uma ditadura fomentada por interesses político-econômicos advindos de projetos norte-americanos para a América Latina. Lá no conto, o Pedro, que retorna para sua inconformada esposa depois de prisão e tortura, é só resto do homem que fora um dia. Pedro e Ana representam assim centenas de narrativas que ainda ecoam na memória da gente do Araguaia, mas ainda à espera de registro e de escuta por parte de uma produção literária que, no Tocantins, ainda não se dedicou a enfrentá-la.

 As paixões literárias de Francisco se deixam mostrar no texto, nas referências ao que Ana lê, ou o que é dado a ler ao jovem Theo, menino que, num dado momento, é o jovem estudante impossibilitado de frequentar a escola pela pandemia. Também se mostra pelas citações empreendidas pelo narrador, que traz, por exemplo, o colombiano Gabriel García Márquez na descrição de Ana, tão bonita quanto a personagem Remédios, ao subir aos céus, ou na referência ao aguaceiro da cidade de Macondo, de Cem anos de solidão.

 Conforme o poético prefácio escrito pela professora e pesquisadora da literatura Neide Rezende, se há uma presença constante, é a dos personagens, podendo ser compreendidos como sempre os mesmos, mas também como outros, porque aparecem em diferentes contextos e temporalidades, sem uma possibilidade de lermos a sequência dos contos numa lógica temporal canônica. Estão antes ou depois, embaralhado o tempo, constituindo-se como caráter semelhante ou distinto. Pedro é fiel e apaixonado ali, casando-se às margens do Araguaia; no outro se deixa seduzir pela febre do ouro, indo do garimpo para muitas aventuras em bordéis, até retornar para sua Ana Penélope, sempre à espera, sem tecer tapetes, pouco afeita a deixar-se enganar.

 Francisco avança construindo um estilo peculiar que, conforme Rezende, aproxima-se da estética de pontuação de renomados escritores portugueses. O modo como registra as frases contribui para embaralhar as distinções entre narrador e pensamentos dos personagens, construindo uma narrativa em que emerge o discurso indireto livre. Esse exercício produz momentos que demandam uma prática de decifração, que solicitam do leitor uma desaceleração, um retorno, que podem, ser, contudo, ignorados pela vontade de saber o que vem além, na parte seguinte, curioso do que sucederá com a vida dos personagens.

Conheço Francisco de muitos anos. Foi aluno da graduação desobedecendo à oferta regular das disciplinas para favorecer aquelas pelas quais demandava maior apreço por conta de seus questionamentos teóricos. Dedica-se com seriedade aos estudos desde sempre. Uma vez, sua casa no bairro São João seria assaltada. Lastimou que houvessem levado objetos, dentre eles seu notebook no qual registrara já muita escrita, naquele momento apenas artigos acadêmicos. Contou-me ter ficado contente, no entanto, de lá estarem devidamente perfilados e em ordem todos os seus livros. Todos os seus Deleuze, Foucault, Freud, a que se somariam posteriormente os Lacan. Que ladrão, urgente de angariar recursos, acharia que os bens mais preciosos eram aquela coleção organizada de livros? Não se tratava de um ladrão teórico, nem acadêmico, felizmente.

Escrevemos juntos alguns artigos, ainda no período da graduação, quando, acompanhados por Theo no carrinho de bebê, negociávamos, no Sabor de Mel, a escrita do texto teórico, frase por frase, apurando conceitos e análises. Hoje, quase não nos vemos, mas andamos por perto, com projetos de livros e muitas parcerias e conversas pelo WhatsApp.

Tenho muita alegria pelo que conquista Francisco, nesse momento em que sua escrita literária emerge com maturidade, com uma editora de prestígio nacional. Fico feliz por vê-lo bem-amado por sua bela Ana, tão linda quanto a Remédios do Gabriel García Márquez. E pelo belo filhinho também de nome Theo que adormece tranquilo em seu colo. Que tenha muitos leitores, Francisco. Que seu livro ganhe mundos.

Autora

Prof.ª Dr.ª Luiza Helena Oliveira da Silva é Coordenadora do Mestrado Profissional em Letras em Rede Nacional/UFNT (ProfLetras) e coordenadora adjunta do ProfLetras Nacional. Docente do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL/UFNT) e Coordenadora do GESTO - Grupo de Estudos do Sentido - Tocantins.

Luiza Silva